Opinião | O realismo moral de Monteiro Lobato

Será a ficção lobatiana tão tóxica que não possamos entendê-la nos termos em que ela foi originalmente produzida e recebida?

Por Marcos Lopes

A ficção infantil de Monteiro Lobato tem sido atacada por contrariar os valores politicamente corretos do século 21. Quebrou-se o pacto de confiança, entre educadores e leitores, que a saudava como um divisor de águas na literatura para crianças, no momento em que se detectou nela um conjunto de visões preconceituosas que espelhariam e legitimariam uma sociedade desigual.

A motivação para encontrar sinais do preconceito em Lobato foi impulsionada pela posição de sua obra no cânone. Seu capital simbólico receberia um contragolpe das reivindicações a favor da inclusão social. Mas será a ficção lobatiana tão tóxica que não possamos entendê-la nos termos em que ela foi originalmente produzida e recebida? Seria possível lê-la a contrapelo das atuais críticas que lhe são endereçadas?

Em Reinações de Narizinho, há um capítulo emblemático (A aranha costureira das fadas), que parece dialogar com o debate atual sobre questões de identidade. Acompanhamos ali as aventuras da personagem pelo Reino das Águas Claras. Recebida com pompa e circunstância pelo príncipe Escamado, a menina necessita de um vestido para o baile em sua homenagem. A aranha recebe a missão de fazer aquele que deverá ser o mais bonito de toda a sua carreira de costureira. Tão maravilhoso que após Narizinho se mirar por três vezes consecutivas no espelho, esse se partirá em pedaços, libertando a costureira de uma maldição. Nesse momento de júbilo descobriremos sua história, ao mesmo tempo em que nos daremos conta da discreta ironia do trecho.

O destino da costureira tem início em seu nascimento, quando “uma fada rabugenta”, que detestava sua mãe, transforma a recém-nascida em aranha, condenando-a “viver de costuras a vida inteira”. Porém, nesse mesmo instante, uma fada boa lhe dá um espelho, pronunciando estas palavras: “No dia em que fizeres o vestido mais lindo do mundo, deixarás de ser aranha e serás o que quiseres”.

O episódio aborda as relações entre liberdade, necessidade, acaso e destino. A passagem se organiza em torno de alguns pares: danação (ser aranha) e redenção (ser o que quiser), maldade e bondade (as duas fadas), mas ela invoca também a tensão entre natureza e cultura, real e maravilhoso e, de modo decisivo para o episódio, trágico e cômico.

No plano do maravilhoso, as situações podem ser revertidas pelo poder mágico. É como se ele fosse desprovido de qualquer lógica consistente. No entanto, o mundo das fadas contém a substância de uma vida moral. Para G. K. Chesterton, a profunda moralidade dos contos de fadas consiste em que eles, “longe de serem livres de leis, vão à raiz de toda lei”. O que revelam não é o “fundamento racionalista de cada mandamento, mas o grande fundamento místico de todos os mandamentos”.

No conto de Lobato, o encaixe de uma história em outra flerta com esse “grande fundamento místico” da moralidade, mas diferenças surgem pelo registro cômico que se insinua nele. As oposições mencionadas não são estanques e o mais adequado é entendê-las como tensões dialéticas. O movimento onírico é hiperbólico (tudo deve ser o melhor e mais bonito, do vestido aos seus adereços); em compensação, a atitude irônica se realiza no registro cômico, o que orienta a decisão da personagem para um realismo moral.

A deficiência em uma das pernas da costureira, causada pelo acidente com uma tesoura, marca o plot twist da narrativa. Pressionada pelo novo casal para que opte por uma nova identidade, a aranha decide permanecer como está. Se escolhesse transformar-se em sereia ou princesa, conforme o desejo deles, continuaria claudicando. Então, como está “acostumadíssima” com seu estado, é melhor conservar sua sequela, o que frustra as expectativas das personagens, com uma “piscadela” para os leitores.

A lógica do maravilhoso parece incapaz de dotá-la da convicção de que “ser o que quiser” implicaria livrar-se da deficiência, fosse esse seu desejo. No desenlace do episódio, se manifesta um ethos no qual convivem a tradição e a modernidade. O humanismo liberal e moderno de Lobato nos adverte de que nossas experiências, boas ou más, não são suprimidas pela promessa da mudança radical. Uma sequela ou cicatriz é a marca incontornável da condição humana. Às vezes, a melhor opção, por paradoxal que pareça, é não mudar, pois assim não cedemos aos desejos bem intencionados de outrem.

Como em toda fábula, os animais de Lobato descrevem as relações humanas em sociedade. Na mesma narrativa, o doutor Caramujo pode curar qualquer doença, exceto reviver uma pessoa morta. Há limites para sua medicina, como na vida. A recusa de uma mudança radical e o limite do poder curativo das pílulas compõem o realismo dessa fábula. Crença e ceticismo correspondem, respectivamente, à fantasia e razão. Dois elementos que não formam uma disjunção, mas uma combinação capaz de nos prevenir dos excessos da correção moral, dos nossos bons impulsos.

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PROFESSOR DE LITERATURA GERAL E COMPARADA NA UNICAMP

Opinião por Marcos Lopes

Professor de Literatura Geral e Comparada na Unicamp