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Opinião|O sangue em nossas mãos

Em condições insólitas, é vital buscar a energia e a inspiração no passado para criar um amplo arco de oposição à PEC do Plasma

Por Richard Parker

Há muitas citações sobre a tendência da História de se repetir. Talvez a mais conhecida seja a de Karl Marx, que escreveu que “a História se repete, primeiro como tragédia e, depois, como farsa”. Outra afirmação conhecida é a do filósofo George Santayana: “Aqueles que não conseguem se lembrar do passado estão condenados a repeti-lo”. Passados 35 anos, o Brasil entra em estado de alerta após a recente aprovação, na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, por 15 votos contra 11, da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 10/2022, conhecida como PEC do Plasma. Para quem se lembra de como a luta contra a epidemia da aids incidiu na Assembleia Constituinte de 1988, as citações de Marx e Santayana soam preocupantemente verdadeiras.

A PEC do Plasma (Senado Federal, 2022) foi elaborada e preliminarmente aprovada para derrubar o preceito constitucional de que a coleta, a manipulação e a distribuição de sangue e derivados (como o plasma humano) devem estar sob controle do Estado. Essa proposta quer abrir essa atividade à iniciativa privada, o que restabeleceria, inclusive, a remuneração das pessoas doadoras de sangue. Parece que o PT e o MDB foram os únicos partidos a orientarem o voto contra essa medida.

A comercialização de sangue e de hemoderivados foi um tema forte no debate público brasileiro nos anos 80. E, embora não só a aids, e sim várias enfermidades tenham sido transmitidas via um sistema de transfusão descontrolado, há uma conexão profunda entre o fim da comercialização de sangue e a história da aids no Brasil.

Criado em 1985, o Programa Nacional de Aids do Ministério da Saúde ainda não havia conseguido conter a rápida expansão dos casos de aids entre pessoas com hemofilia, ou seja, que recebem com frequência a transfusão de sangue. Na época, havia graves distorções no sistema nacional de captação e comercialização de sangue e hemoderivados que se encontrava, em grande medida, sob controle do setor privado. A doação de sangue era financeiramente recompensada por bancos de sangue que operavam no mercado paralelo e sem nenhuma regulamentação.

À medida que a infecção pelo HIV de pessoas com hemofilia começou a se expandir, figuras públicas como Betinho e seus irmãos Henfil e Chico Mario se tornaram a cara da aids – representavam as vítimas infectadas em razão da ganância comercial e da inaptidão governamental. Uma crescente insatisfação pública ganhou corpo e se transformou num debate tenso sobre o papel dos setores público e privado na organização dos serviços de saúde, incluindo a necessidade de maior regulação do setor privado.

As mobilizações políticas fomentaram a reorganização do sistema público de saúde e a reforma sanitária. Betinho e a sociedade civil organizada tiverem um papel crucial neste processo. A campanha Salve o Sangue do Povo Brasileiro, por exemplo, fazia ações de advocacy pela proibição da comercialização de sangue e hemoderivados na Assembleia Nacional Constituinte. Na ocasião, surgiu o slogan Sangue Não É Mercadoria.

Sólidas coalizões foram forjadas entre as forças progressistas na Assembleia Constituinte para aprovar os artigos que proibiram a comercialização de sangue e derivados no Brasil. Ações que ajudaram a sedimentar a definição de saúde como direito básico de cidadania e responsabilidade do Estado gravada no artigo 196 da Constituição de 1988. A luta pelo fim da comercialização do sangue foi uma peça fundamental na edificação de um Sistema Único de Saúde (artigo 197) financiado, regulamentado e supervisionado pelo Estado.

Nestes tempos de memória seletiva, é vital resgatar o significado e o impacto de longo prazo desses eventos. O princípio da saúde como direito de cidadania – um direito garantido pelo Estado e protegido contra a invasão de interesses privados, como no caso da comercialização de sangue – foi o alicerce da bem-sucedida resposta brasileira ao HIV. Também abriu caminho para a classificação do acesso aos medicamentos antirretrovirais como um direito, o que faria do Brasil um líder mundial na resposta à aids. Além disso, vale lembrar que foi o SUS que impediu uma catástrofe ainda maior da epidemia da covid-19 no Brasil.

O Senado Federal – hoje com forte tendência ultraconservadora – está a ponto de derrogar os parâmetros constitucionais de defesa contra a mercantilização de insumos de saúde pública. A PEC do Plasma segue para aprovação do Senado, onde será apreciada em dois turnos e requer a aprovação de 3/5 dos(as) senadores(as). Em condições insólitas, é vital buscar a energia e a inspiração no passado para criar um amplo arco de oposição a esta PEC.

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DIRETOR-PRESIDENTE DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA INTERDISCIPLINAR DA AIDS (ABIA), CO-COORDENADOR DO OBSERVATÓRIO DE SEXUALIDADE E POLÍTICA (SPW), EDITOR-CHEFE DA REVISTA GLOBAL PUBLIC HEALTH, É PROFESSOR TITULAR EMÉRITO DE CIÊNCIAS SOCIOMÉDICAS E ANTROPOLOGIA DA ESCOLA MAILMAN DE SAÚDE PÚBLICA DA UNIVERSIDADE COLUMBIA DE NOVA YORK

Opinião por Richard Parker