“Quando falam as armas o Direito silencia” é uma antiga máxima utilizada para descrever o Direito Internacional – conjunto de regras, princípios e standards voltados a regular a vida dos Estados. Mais de um mês se passou do abominável ataque do grupo Hamas contra o território de Israel que desencadeou um dos mais violentos conflitos recentes no Oriente Médio. Contudo, um questionamento permanece suspenso no ar: onde estão as vozes do Direito em meio às atrocidades que diariamente são narradas em jornais e redes sociais?
Muitos juristas ao redor do mundo ofereceram análises e versões desde o início do conflito. Algumas precipitadas, outras talvez ingênuas, essas análises são importantes por ao menos um motivo: a linguagem do Direito continua presente em meio à guerra, apesar de não ser capaz, ainda, de fazer cessar o sofrimento das populações civis. Este artigo busca brevemente recordá-las, na crença de que é no Direito, e não nas armas, que se construirá um diálogo que possa oferecer uma saída sustentável ao conflito.
Embora exista algum debate sobre a questão do direito de Israel de legítima defesa, pouca discussão existe sobre o direito de um Estado se defender de um ataque armado – e que esse direito tem limites. A Carta das Nações Unidas e as decisões do Conselho de Segurança da ONU são claras ao estabelecer que a existência de um ataque armado oferece um inerente direito de resposta contra os atacantes. As questões que surgem neste momento dizem respeito à proporcionalidade da resposta e até quando esse direito de legítima defesa pode ser sustentado, guiado pelos interesses gerais da comunidade internacional e por considerações de humanidade. Nesse aspecto, o debate é mais intenso, e um outro conjunto de regras parece particularmente importante a ser considerado: o Direito Internacional Humanitário.
Corpo jurídico antigo e bem estabelecido de convenções e costumes internacionais, as Convenções de Genebra, seus protocolos e outros tratados impõem limites duros à beligerância no escopo da proteção da população civil. O uso de reféns, o bombardeamento de hospitais, o alvo indiscriminado a civis, o uso de armamentos de alta letalidade não são aceitos pelas regras internacionais. Sua violação pode ensejar a ocorrência de crimes de guerra, crimes contra a humanidade ou outros crimes internacionais. Estes, por sua vez, seguem a lógica de todo e qualquer crime: devem ser devidamente apurados, investigados e punidos. Indivíduos poderão ser julgados pelo Tribunal Penal Internacional ou, ainda, por cada Estado que os reconhece em seu ordenamento. Voltadas ao futuro, as regras punitivas do Direito Internacional só entrarão em cena quando as hostilidades finalmente cessarem. Até lá, a finalidade do Direito Humanitário é bastante óbvia: a proteção de civis e não combatentes que nada têm que ver com os interesses do conflito. É nesta linha que o Conselho de Segurança, ainda paralisado, ofereceu uma primeira resolução para pausas humanitárias (mas não quiseram falar num cessar-fogo, tampouco reconhecer quem está errando no conflito).
O que parece estar sendo olvidado neste momento é que os acordos internacionais são instrumentos importantes para pôr fim ao conflito. Foram acordos que permitiram que brasileiros deixem Gaza ou que a ajuda humanitária finalmente alcance as populações de refugiados que não se podem locomover. Serão as ações levando em consideração o Direito Internacional dos direitos humanos que vão garantir o direito à autodeterminação e regularão a vida dos tantos refugiados que este conflito multiplicará. É, também, com base nessas lógicas que poderemos julgar os atos intolerantes que se espraiam mundo afora, aumentando a insegurança de grupos e populações que estão a anos luz do conflito, mas sofrem com o preconceito e atos hediondos. O mundo é menos seguro, mas há normas que buscam alterar esse fato.
Neste contexto, todo Estado, inclusive o Brasil em sua política externa jurídica, deve ser guiado pelos mesmos tratados e pelo mesmo interesse de fazer pressões para pôr fim ao conflito. Dos EUA ao Irã, da Rússia ao Catar, não há um Estado sequer que possa se eximir de levar em consideração suas obrigações internacionais aqui mencionadas para tentar fazer cessar, o mais rapidamente possível, o conflito que se descortina e que, como uma espiral odiosa, alcança e viola regras básicas em todos os cantos do mundo. A busca por um acordo é, também, uma obrigação proveniente da Carta e das noções de humanidade. Mais de um mês de guerra provou que as vozes do Direito ainda não desapareceram – e não podem desaparecer: no Conselho de Segurança, na Assembleia-Geral e em tantos outros fóruns de negociação que desde 1945 a comunidade internacional erigiu para evitar que as futuras gerações sofram com o flagelo da guerra.
Confiar no Direito Internacional é pouco? Talvez dissociado da política. Mas ele é, certamente, o que resta àqueles que desejam ver, o mais rapidamente possível, o cessar das hostilidades e uma saída sustentável e estável para o aluvião de sofrimento que irradia de uma das regiões mais assoladas do mundo por histórias de conflitos. Não é hora de silenciar o Direito Internacional.
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PROFESSOR DE DIREITO INTERNACIONAL DA FACULDADE DE DIREITO DA UFMG, É COORDENADOR DO GRUPO DE PESQUISA EM CORTES E TRIBUNAIS INTERNACIONAIS CNPQ/UFMG