No regime tirânico o dirigente “despreza as leis da natureza, abusa das pessoas livres como se elas fossem escravas, e dos bens dos governados como dos seus” (Jean Bodin, Os Seis Livros da República, II). Desde longa data levo uma batalha inglória na mídia e em setores acadêmicos, mas sempre termino derrotado pelo equívoco que define certa palavra filosófica. Falo do cinismo.
É incrível a pirueta lógica sofrida em milênios por essa forma de agir e pensar. A doutrina cínica apresenta-se nos teóricos da ética e da moral como via de virtude. Elogiada pelas mais finas mentes ocidentais, ela ganhou má fama entre os hipócritas e demagogos que dominam multidões. Exemplo de elogio dirigido aos cínicos? O padre Vieira: “Os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e legiões, ou o governo das províncias, ou a administração das cidades, os quais já com manha, já com força, roubam e despojam os povos. Os outros ladrões roubam um homem: estes roubam cidades e reinos; os outros furtam debaixo do seu risco: estes sem temor, nem perigo; os outros, se furtam, são enforcados: estes furtam e enforcam. Diógenes, que tudo via com mais aguda vista que os outros homens, viu que uma grande tropa de varas e ministros de justiça levavam a enforcar uns ladrões, e começou a bradar: ‘Lá vão os ladrões grandes a enforcar os pequenos’. Ditosa Grécia, que tinha tal pregador! E mais ditosas as outras nações, se nelas não padecera a justiça as mesmas afrontas!” (Sermão do Bom Ladrão). Diógenes, o cínico, recebe merecidas loas de Vieira.
Além da crítica à hipocrisia de quem rouba e condena a corrupção, algo comum na História da humanidade, os cínicos ensinam virtudes de cidadania e paz social. Sem amizade (philia) não existe coletivo humano. Se imperam as paixões da lisonja, inveja, ignorância com ataques entre pessoas, some o trato civil, reina a guerra de todos contra todos. Além do respeito mútuo, é preciso, pensam os cínicos, que os indivíduos pratiquem a disciplina da mente e do corpo. Quem não depende de favores corruptos nada teme, pode falar sobre todos os pontos controversos da ordem pública. O discurso livre não se sujeita à riqueza ou poder, não se dobra à massa dos que seguem partidos hegemônicos. O mesmo Diógenes ficou célebre com a seguinte frase: “Quando sou aplaudido por muitos, certamente devo examinar-me para saber se não disse uma bobagem”. Em tempos de internet, quando todos, do simples funcionário ao presidente da República, buscam aplausos para suas falas de ódio ou desprezo contra os que pensam de modo diferente, os cínicos são uma ausência dolorosa.
Passemos aos fatos da nossa República. Nela são chicoteados os que roubam barras de chocolate, mas passam incólumes os que abusam dos bens públicos em proveito próprio. A chamada “reforma política” brasileira seria alvo certo dos bons cínicos, pois nela a hipocrisia atinge níveis inéditos na crônica política. Em vez de se adequarem ao republicanismo, os legisladores (?) brasileiros se aproveitam do cargos para aumentar o tesouro partidário com recursos subtraídos da educação, saúde, ciência, tecnologia, segurança. Mudam os nomes das agremiações, mas o seu funcionamento interno continua sob controle de burocratas e oligarcas que açambarcam os cofres, as eleições, as coligações, as traições recíprocas.
Quantos políticos agem e pensam como cínicos? Quase nenhum. Quem, num instante de crise econômica, social e política aproveita seus poderes para enriquecer cofres partidários em prejuízo da vida civil não é cínico. Seu título foi dado por Diógenes e, depois, por Vieira em saboroso latim: laterones! Manobras legislativas de hoje podem permitir enorme aumento nos dinheiros eleitorais em prol dos partidos políticos (Câmara aprova ‘brecha’ para aumentar valor do fundo eleitoral, Estado, 4/9). Como diria Diógenes, “lá vão...”.
Em entrevista à TV Câmara (5/9/2014), indiquei os elementos polêmicos da suposta reforma política. Entre eles o fato conhecido por analistas, poderosos ou simples militantes: nossos partidos reúnem o pior do mando oligárquico, unido a uma burocracia carcomida, e a quase ninguém representam. Por armadilhas legais eles se transformam em feudos de grupos que tudo controlam, dos cofres às candidaturas, alianças, propaganda, etc. Ocorre neles algo similar ao que se passa em ligas futebolísticas e atléticas nacionais: a cartolocracia. Além do controle absoluto de cartolas sobre a vida partidária, não existe nela democracia interna. Inexistem eleições primárias, as indicações de candidaturas se fazem em ambientes fechados onde poucos decidem.
Como resultado, a gerontocracia domina os comitês, entradas de novos quadros dirigentes se dão em regime de conta-gotas. A juventude é alheia e hostil aos partidos, dirigentes permanecem por décadas e décadas, enrijecendo o controle partidário.
Não é por falta de assessorias e reflexões técnicas que a suposta reforma seguiu no rumo do pior. Existem trabalhos especializados que mesmo agora podem ser úteis. Leia-se o documento substancioso A Proposta de Reforma Política: Prós e Contras (disponível em https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/estudos-e-notas-tecnicas/publicacoes-da-consultoria-legislativa/areas-da-conle/tema3/2004_14292.pdf).
A indecência de engordar o fundo partidário na hora em que os laboratórios e bibliotecas universitários estão ameaçados, hospitais deixam de cumprir seu mister, a insegurança grassa não é cinismo. É tirania, como afirma Bodin, que ajudou a edificar o Estado moderno. E por falar em Estado vale o dito de Santo Agostinho: “Remota itaque iustitia, quid sunt regna nisi magna latrocinia?” (Sem a justiça, que outra coisa são os reinos senão grandes latrocínios?). Respondam os que usam a mítica reforma política em favor de sua tirania.
* PROFESSOR DA UNICAMP, É AUTOR DE ‘RAZÕES DE ESTADO E OUTROS ESTADOS DA RAZÃO’ (PERSPECTIVA).