Escrevo este artigo para contextualizar e defender a Resolução Conanda n.º 258, palco de tanto embate, tendo conseguido a proeza de colocar, do mesmo lado da disputa, o governo Lula e a senadora Damares Alves. Vamos do início.
O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) integra a estrutura do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. É um conselho paritário (metade dos integrantes é da sociedade civil e a outra metade, do governo) e deliberativo (tem caráter decisório, não só opinativo) que tem a função de definir as diretrizes para a política nacional de promoção, proteção e defesa dos direitos de crianças e adolescentes e de fiscalizar as ações executadas pelo poder público no que diz respeito ao atendimento dessa população.
E foi a partir da função fiscalizatória que o Conanda se deu conta da imensa violação de direitos que meninas grávidas em decorrência de estupro estavam sofrendo ao procurar o sistema de saúde.
Foram muitos episódios, alguns com grande repercussão na mídia, como o da menina de 10 anos grávida que não pôde realizar o aborto no Espírito Santo e teve que ser mandada para Recife, em 2020. Ou ainda, em 2022, o caso da menina de 11 anos que teve o direito à interrupção da gravidez cerceado por uma juíza de Santa Catarina. Ou em 2024, quando uma menina de 13 anos quase não consegue realizar o aborto legal por uma decisão do Tribunal de Justiça de Goiás que, atendendo a um pedido do pai da garota, proibiu a realização do procedimento. A situação foi revertida por decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Esses são só alguns exemplos para caracterizar a necessidade que o Conanda viu de editar uma normativa que regulamentasse o atendimento de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, garantindo, assim, seus direitos. Ocorre que, às vésperas da votação, começou um movimento de políticos e influencers da extrema direita para impedi-la, dizendo que acabaria com o poder dos pais sobre as filhas.
O governo, então, sob o argumento de que a resolução criava um direito novo, que só poderia ser determinado por lei, pede o adiamento da votação e vistas do processo. Tal pedido foi recusado pelo conselho, já que o teor da resolução vinha sendo discutido com os integrantes do governo há meses e havia consenso na redação.
Diante disso, o governo orientou seus representantes a votarem contra, mas a Resolução 258 foi aprovada por 15 votos a 13.
Na sequência, a senadora Damares entrou com um pedido de suspensão da publicação, alegando os mesmos motivos do governo, inclusive a negativa de vistas. A suspensão foi deferida liminarmente pela Justiça federal de primeiro grau, mas a sociedade civil recorreu, e o desembargador Ney Bello autorizou liminarmente a publicação, afirmando que não havia criação de direito novo.
A resolução foi publicada e está em vigor.
Relatado esse histórico, vamos à análise do teor e do que está incomodando. O que mais incomoda é que a vontade da menina deve prevalecer sobre a vontade dos pais. Foi isso que este importante jornal (do qual sou leitora assídua) criticou no editorial de 13 de janeiro Mais confusão no aborto legal.
A crítica era de que a resolução violaria o pátrio poder previsto no Código Civil. Vamos lá.
O chamado pátrio poder não é absoluto e já foi relativizado em vários momentos pelo próprio Supremo Tribunal Federal (STF) em situações extremas, nas quais o interesse do menor e dos pais entra em conflito. Vejamos alguns exemplos.
No caso da vacinação obrigatória (Tema de Repercussão Geral n.º 1.103 ), o ministro Nunes Marques afirmou em seu voto que: “A relação dos pais com os seus filhos menores é de representação ou assistência, não de propriedade. Eles não podem atribuir aos filhos as suas próprias objeções de consciência e de crença, quando isso implicar a supressão de um direito da criança, notadamente com riscos à saúde e à vida dela”.
Em outro caso, julgado em 2024, sobre a recusa de um paciente de receber transfusão de sangue por questões religiosas (Tema de Repercussão Geral n.º 952), o STF fixou a tese de que: “A recusa de transfusão de sangue somente pode ser manifestada em relação ao próprio interessado, sem estender-se a terceiros, inclusive e notadamente filhos menores”.
Em seu voto, o ministro Edson Fachin afirmou que: “Sempre que os direitos da criança e do adolescente estiverem sob ameaça de violação, faz-se necessária a pronta intervenção estatal, assegurando que essa pessoa ainda em desenvolvimento venha a ter a possibilidade concreta de construir a sua personalidade pelas suas próprias escolhas, com a garantia de sua liberdade positiva”.
A questão da interrupção da gravidez de meninas se encaixa exatamente nesse caso. Nunca é demais lembrar que são cinco estupros de menores de 14 anos registrados por hora no País, sendo que, em mais de 60% dos casos, o estupro é praticado por um familiar, dentro de casa. O Estado deveria ser capaz de impedir que meninas fossem estupradas, mas, se não é, o mínimo que pode fazer é tratá-las com dignidade e respeito depois que o mal está feito.
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PRESIDENTE DO INSTITUTO LIBERTA, ADVOGADA, PRESIDENTE DA COMISSÃO DE DIREITO CONSTITUCIONAL DA OAB-SP, É PROFESSORA DA PUC-SP