Opinião | Um Trump não nasce no vácuo

É muita presunção dizer que aquilo que os americanos querem para si é errado

Por Rubens Figueiredo

A imagem que o mundo tem dos Estados Unidos foi construída majoritariamente pelo pensamento da esquerda, que se autodenomina progressista e apresenta uma hegemonia bastante confortável nas universidades e meios de comunicação tradicionais continentes afora. O pior tipo de raiva é aquele que vem associado à inveja. É dessa combinação de que estamos falando – nutrimos pelos EUA uma mistura corrosiva desses dois sentimentos.

Do ponto de vista objetivo, os Estados Unidos são a maior economia do planeta; a democracia, com seu federalismo que assombrou Alexis de Tocqueville, é exuberante; têm uma produção científico-acadêmico-cultural e um desempenho esportivo incomparáveis; são referência em tecnologia, o que significa dizer, entre outras coisas, daquilo que eu gosto ou me excita; e a qualidade de vida de seus habitantes é assombrosa. Nos filmes e seriados, os americanos, mais organizados, bonitos, treinados, corajosos, leais e honrados, ganham causas nobres quase sempre. Garotos do frio da Sibéria, da esperança do peixe do Pantanal ou da fuga do predador da África imaginam a fantasia da Disney nos seus momentos mais difíceis.

Mas os Estados Unidos não merecem uma piscadela de admiração do ponto de vista da sociedade que forjaram. Embora um morador de rua de Nova York viva melhor do que um cidadão de classe média da África subsaariana, nossos irmãos do norte são – ou pior, simbolizam - o berço da desigualdade, com seu liberalismo excludente, falta de consciência de classe e conglomerados de riqueza que agridem as massas depauperadas. O sucesso incomoda: Beverly Hills é a ofensa pessoal da qual falava Tom Jobim. O capitalismo que inventaram gera riqueza para valer, mas é pobre de espírito, egoísta, não presta. Da mesma maneira que não gostamos deles, eles não gostam da gente. A diferença é que acalentamos o “american dream” e queremos ir para lá, viver lá, enquanto para eles continuamos sendo uma curiosidade antropológica, da qual é prudente manter uma distância razoável.

Na sua inserção internacional, então, são uma espécie de emissários de Lúcifer, só fazem o mal. Imperialistas e exploradores, os americanos sugam a riqueza do mundo e impõem seu comportamento e gostos às nações genuínas, que, indefesas, vão perdendo sua identidade. Sua ação militar, exercida em nome da democracia, usa uma força desproporcional, é considerada golpista e contrária à soberania dos povos, quando não covarde. Vejam as “revoluções” na América Latina (Brasil inclusive), Baía dos Porcos, Oriente Médio... Eles vêm com bombas pelos ares, filmes pelos sofás e McDonald’s adentro dos aparelhos digestivos. Intervencionistas, são abomináveis. E, com a ameaça isolacionista de Donald Trump, inconsequentes.

Lideranças não surgem na ausência de gravidade onírica, sem correntes de opinião a legitimá-las. Nunca na história humana tantos falaram tanta baboseira para tanta gente. E a sociedade americana é uma das mais plurais do mundo, provavelmente a mais. Não é o algoritmo que escolhe o que você “deve” assistir, estúpido. É você quem direciona o algoritmo para aquilo que prende sua atenção. Se Trump ganhou a eleição, é porque expressou e atraiu um conjunto de ideias (mimetizado no seu modo histriônico de ser) que representa o desejo profundo dos americanos. Se erro existe, é da opinião pública. É muita presunção dizer que aquilo que os americanos querem para si é errado.

Dá trabalho, reconheço. Mas sugiro uma leitura atenta do alentado relatório Ipsos Populism Survey: Populism, Anti-Elitism and Nativism (pesquisa realizada em 28 países, datada de fevereiro de 2024). Algo em torno de 70% dos entrevistados acham que seus países estão em declínio. Mais do que 70%, que precisam de líderes fortes. E 60% entendem que esses líderes fortes devem cogitar a possibilidade de quebrar regras. Com um contingente dessa magnitude pensando assim, não surgirão novos Cristos, Gandhis ou Mandelas tão cedo.

O mais intrigante é o fato de que Trump não é, digamos, um americano quatrocentão, típico, da gema. Não é um Waspwhite, anglo-saxão e protestante. Ele descende de alemães imigrados para os EUA em 1895 e Melania Trump, sua mulher, é eslovena. O braço direito de Trump é o ministro Marco Rubio, filho de cubanos refugiados na Flórida. Gente de fora, que entendeu o que são os Estados Unidos por dentro e que acham que o país não é lugar para quem é de fora.

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CIENTISTA POLÍTICO

Opinião por Rubens Figueiredo

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