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Jornalista e professor da ECA-USP, Eugênio Bucci escreve quinzenalmente na seção Espaço Aberto

Opinião | AmélIA

A figura que tem lugar no panteão das entidades sagradas da cultura brasileira como representante da ‘mulher de verdade’, agora, é um aplicativo barato

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Já estão disponíveis na internet robôs digitais que namoram seres humanos destroçados por misérias afetivas analógicas. Estão aí, ao alcance de um clique. Qualquer mortal instala o serviço no celular sem a menor dificuldade. A partir daí, o sujeito consegue fabricar uma persona amorosíssima, com as características físicas que bem quiser. Pele escura? Pois não. Olhos cândidos? Aqui estão. Lábios voluptuosos? Disponha. Também o temperamento é de livre escolha. Voz rouca em alma incendiária ou prosa mansa, contemplativa – as combinações variam conforme as preferências do freguês.

O envolvimento emocional vem a galope. As interações entre a maquininha e seu comprador podem se dar por texto, por voz e até mesmo por vídeo. Fluentes em assuntos de alcova, os chatbots libidinosos conversam como se fossem gente, pois são movidos pelo que temos chamado precariamente de “Inteligência Artificial”, ou, simplesmente, IA. Não, eles não têm sentimentos ou emoções – pelo menos é o que garantem os engenheiros céticos. Só o que eles fazem é fingir. Fingem o tempo todo. Fingem muito bem. São irresistíveis com suas mentiras sinceras.

Alguém vai dizer que amantes reais também fingem deliciosamente, mas há indícios confiáveis de que amantes artificiais são mais convincentes em matéria de encenar embevecimentos. Espertos, descolados e sedutores, arrebatam consumidores e consumidoras. Uma das principais plataformas deste admirável mercado carinhoso atende pelo nome de Replika. Segundo informa o professor Diogo Cortiz, em artigo publicado há uma semana no Tilt, página de conteúdo tecnológico do UOL, a Replika já tem mais de 10 milhões de usuários pagantes. Há depoimentos de gente dizendo nunca ter sido tão feliz num relacionamento.

Não, não se trata de uma reles onda de novos gadgets para divertir a plateia planetária. Não é apenas um passatempo a mais. Estamos no início de uma drástica reconfiguração das relações amorosas. A cultura dos afetos entrou em transformação profunda.

À medida que a gente vai se inteirando do que já está disponível por aí, vai tendo uma ideia menos vaga do que está em curso. As alternativas podem surpreender e até mesmo chocar. Há ofertas de todo tipo, em expansão orgástica. Quem viu o filme Ela (Her, de Spike Jonze), lançado em 2013, vai entender. Na trama, Theodore (Joaquin Phoenix) se apaixona por um sistema operacional loquaz que dialoga com ele na voz nada vulgar de Scarlett Johansson. Pois hoje as cenas se repetem, ou podem se repetir, mas não mais como peça de ficção. Passados dez anos do lançamento do filme, a possibilidade de acasalamento entre um cidadão com CPF e RG e um apetrecho computacional vai se tornando uma trivialidade corriqueira.

A técnica vai ocupando espaços antes impensáveis, e isso numa velocidade atroz. Máquinas fazem de tudo. Até amor. Durante a pandemia da covid-19, causou espanto a notícia de que já existiam aplicativos oferecendo terapias psicológicas. O pesquisador Joshua August Skorburg tratou disso num artigo para a revista AJOB Neuroscience no ano passado (Is There an App for That?: Ethical Issues in the Digital Mental Health Response to covid-19). Agora, o divã cibernético se presta a outros fins. A autoajuda já não tem nenhum tipo de inibição ética. Ela só pensa naquilo. Só fala naquilo. Ou, se o cliente preferir, só fala naquilo de modo não tão explícito, fala por meio de representações veladas e insinuantes, num erotismo que come pelas bordas.

O narcisismo nunca foi tão alimentado e acariciado como agora. Nunca deu tanto lucro. Muita gente já observou que as ditas “companheiras digitais”, como vêm sendo chamadas, nunca dizem “não”. Elas aceitam tudo, concordam com tudo, topam tudo. As AI Girlfriends, em inglês, têm um prazer performático em dizer yes. Narciso não gosta de ouvir o que não é “sim”.

Sem medo de errar, podemos dizer que as AI Girlfriends são a reencarnação da antiga Amélia, a personagem eternizada pelo cancioneiro pátrio. O improvável leitor e a improvável leitora hão de se lembrar. No velho samba de Mário Lago e Ataulfo Alves, a Amélia era aquela que “não tinha a menor vaidade”. Mais do que isso, “achava bonito não ter o que comer”. E, quando via seu namorado contrariado, logo se apressava em confortá-lo: “Meu filho, o que se há de fazer?”.

Estamos entrando na era da Amélia sintetizada em laboratório, da Amélia dotada de Inteligência Artificial: AmélIA. A figura que tem lugar no panteão das entidades sagradas da cultura brasileira como representante da “mulher de verdade”, agora, é um aplicativo barato.

Mário Lago foi acusado de machista por ter idealizado uma princesa solícita. A acusação não lhe fez justiça. Mais do que o machismo, ele enalteceu o narcisismo. Sua cara-metade jamais o contestava, nem quando em estado de necessidade. Sua cara-metade era o espelho que o reafirmava. Daí para a AmélIA, basta um clique.

E depois? Quais as consequências disso para a conformação das subjetividades? O que vai acontecer com o conceito que temos de amor? Você sabe? Sua namorada virtual há de saber.

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JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP

Opinião por Eugênio Bucci

Jornalista e professor da ECA-USP, Eugênio Bucci escreve quinzenalmente na seção Espaço Aberto

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