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Jornalista e professor da ECA-USP, Eugênio Bucci escreve quinzenalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|Não há mais como abrir os olhos

O filme ‘Não olhe para cima’ é um diagnóstico ferino do mal que vem comendo por dentro aquilo que já chamamos de civilização.

Por Eugênio Bucci

O Estado se ajoelha para o capital e ainda abana o rabinho. A ciência, para se fazer ouvir, precisa enviar representantes aos programas de celebridades na televisão, onde disputa espaço com o sensacionalismo mais torpe e as frivolidades mais fúteis. A política perdeu os laços que um dia teve com o argumento racional; agora, se quiser alcançar o público, tem de contratar cantores beócios, ainda que afinados, e empacotar sua mensagem em versos lacrimosos e melodias previsíveis. Assim caminha a humanidade – para a extinção.

Em poucas palavras, este é o recado essencial do filme Não olhe para cima, dirigido por Adam McKay, em cartaz no Netflix. Estamos falando, aqui, do assunto mais momentoso das festas de final de ano. Nestes tempos de amortecimento dos sentidos cívicos, as pessoas se entretêm umas às outras “postando” comentários sobre a superprodução. Trata-se de uma febre natalina, mais contagiosa que outras febres, para as quais a sociedade resolver fechar os olhos de uma vez.

Aqui mesmo, no Estadão, na página A6 da edição de ontem, Não olhe para cima apareceu com destaque como o “tema do dia”. Não é para menos. Na trama, dois cientistas (Leonardo DiCaprio e Jennifer Lawrence) descobrem que um cometa – na verdade um bloco mineral com quase dez quilômetros de extensão – vai colidir com a Terra e destruir a vida no planeta. Eles tentam explicar o cataclismo para a presidente dos Estados Unidos (Merryl Streep), mas a conversa não prospera. A governante não disfarça o enfado e se declara cansada de gente que vai até ela anunciando o fim do mundo. Então, diz que precisa aguardar as eleições para decidir o que fazer.

Os dois astrônomos ficam atônitos, mas não desistem. Desobedecendo as instruções expressas da Casa Branca, resolvem dar uma entrevista a um telejornal que mescla amenidades e atrocidades para capturar a audiência. O resultado é um fiasco vexatório, motivo de chacota nacional.

O cometa vai se aproximando, com sua velocidade estonteante, enquanto o enredo evolui num andamento que mescla tragédia e comédia, romance e catástrofe, sátira e fábula, thriller e distopia. O espectador não desgruda. Talvez falte realismo aqui ou ali, talvez falte verossimilhança, mas o plano geral tem força, magnetismo e poder de convencimento. Se você ainda não viu, veja correndo, nem que seja para poder palpitar nas conversas de réveillon. (Não tenha dúvida de que, na noite da virada, em que as vendas sobre a vista sobrepujarão as máscaras sobre a boca e o nariz, o sucesso da temporada vai estar em pauta.)

Festividades à parte, Não olhe para cima é um dos mais ácidos retratos da cultura dos nossos dias. Merece ser visto com atenção redobrada. Mais do que um blockbuster, é um diagnóstico ferino do mal que vem comendo por dentro aquilo que já chamamos de civilização.

O problema do filme não tem nada que ver com cometas, asteroides ou meteoritos – esses corpos celestes servem apenas de pretexto cênico e dramático. O problema central é o enlouquecimento dos métodos pelos quais a sociedade democrática toma suas decisões. É como se as imagens espetaculares que se acendem em toda parte não nos abrissem a visão do que se passa na realidade, mas nos cegassem. É como se estivéssemos todos encerrados numa nova Caverna de Platão, cujas paredes são feitas de telas eletrônicas.

Gravemente enfermos, a sociedade e o Estado perderam a capacidade de escutar a ciência – esta só ganha crédito quando o pesquisador é sexy. O capital, de sua parte, só tem ouvidos para os seus próprios cientistas, aqueles que são pagos para dizer as “verdades científicas” que legitimam o lucro e a acumulação. Se acontece de essas “verdades” entrarem em choque com as condições mínimas de preservação da vida no planeta, ora, a vida que espere, mesmo morrendo.

Não olhe para cima vem para nos falar exatamente disso. A presidente dos EUA é tratada como subalterna pelo seu principal financiador de campanha, o magnata Peter Isherwell (Mark Rylance). Um misto de Tim Cook e Elon Musk, Peter Isherwell é um monopolista da superindústria dedicada à extração dos nossos dados pessoais. Entra quando bem entende em qualquer reunião na Casa Branca. Não tem limites. Dá ordens à chefe de Estado. Não admite nenhuma contestação. Na hora mais crítica, manda abortar uma missão espacial comandada diretamente pelo governo e determina que os “estudos” dos seus cientistas particulares prevaleçam sobre os planos da Nasa.

A política faliu. Só o que resta a quem queira criticar o imobilismo estatal e a ganância capitalista é apelar para os astros do showbusiness, retratados como alienados de rostinho bonito. A política não passa de um escaninho menor dentro da indústria do entretenimento. Fim de linha total.

Para terminar, vale registrar aqui uma autoironia caprichosa: Não olhe para cima critica o entretenimento, mas é também uma mercadoria lucrativa dentro dessa superindústria. Assim, e somente assim, a humanidade ainda consegue rir de si mesma. Feliz ano-novo.

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JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP

Opinião por Eugênio Bucci
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