Em liminar dada no último domingo, o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), atendeu a um pedido da Confederação Nacional de Saúde, Hospitais, Estabelecimentos e Serviços (CNSaúde) e suspendeu a vigência do novo piso nacional da enfermagem. A medida cautelar gerou revolta entre os profissionais da área e os parlamentares que aprovaram o projeto, mas sua concessão pelo ministro era mais do que esperada. Trata-se de uma consequência natural do debate público sobre o tema, marcado pela superficialidade do Legislativo e pela omissão do Executivo – agravada, neste caso, pelo desespero eleitoral de Jair Bolsonaro. Independentemente do incontestável mérito da categoria ao longo da pandemia de covid-19, o assunto jamais poderia ter sido tratado da forma irresponsável como foi, sobretudo quando envolve o setor público, entidades filantrópicas e mais de 2,7 milhões de profissionais.
Desde a apresentação até a sanção de tal projeto de lei, passaram-se pouco mais de dois anos, um tempo expresso no processo legislativo. A proposta nasceu com um insanável vício de iniciativa – foi apresentada por um senador, quando a proposição de pisos salariais é prerrogativa do Executivo. Não poderia, portanto, nem mesmo ter tramitado, e, uma vez aprovada, obrigatoriamente deveria ser vetada. Mas o Congresso inovou: não só deu aval ao projeto, como atrasou seu envio à sanção presidencial. Dentro de um espaço de dois meses, o Legislativo apresentou e promulgou uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para retirar do governo a exclusividade na proposição do piso, eliminando, de forma retroativa, a natureza inconstitucional do projeto de lei que havia sido aprovado semanas antes – somente então ele foi enviado à sanção. Em segundo lugar nas pesquisas, Bolsonaro acatou a proposta, não por concordar com seus termos, mas para não perder votos de uma categoria majoritariamente feminina. Chamada a se manifestar na ação, a Advocacia-Geral da União (AGU) se manifestou pela constitucionalidade do piso – incentivando o avanço de quase 200 projetos de lei que visam a regulamentar a remuneração de profissionais como fisioterapeutas, guardas municipais, policiais e conselheiros tutelares, já em tramitação na Câmara e no Senado.
A tentativa de usar a Constituição para impedir um veto presidencial já seria suficiente para condenar a atuação conjunta do Congresso e do governo. Mas, unidos, eles foram muito além. A despeito do impacto que a majoração dos salários da enfermagem teria nas contas públicas, fizeram a legítima cortesia com o chapéu alheio e aprovaram o piso sem fixar uma fonte de recursos para custeá-lo. O projeto se limitou a deixar as indefinidas possibilidades de financiamento em aberto – entre elas a arrecadação oriunda da legalização dos jogos de azar e a inclusão do setor de saúde entre os que fazem jus à desoneração da folha. Um grupo de trabalho da Câmara calculou que a política salarial exigiria R$ 16,3 bilhões extras, dos quais R$ 4,1 bilhões do setor público municipal e R$ 5 bilhões de entidades sem fins lucrativos.
Diante da negligência do Executivo e do Legislativo, restou ao ministro Luís Roberto Barroso chamá-los a assumir as responsabilidades que deixaram em segundo plano. Em sua decisão, o ministro deu 60 dias para que seja esclarecido o impacto financeiro do piso nacional da enfermagem, bem como suas consequências sobre a empregabilidade e a qualidade dos serviços de saúde. Nas palavras de Barroso, ao aprovar e sancionar o projeto sem cuidar das providências para viabilizar sua execução, governo e Congresso “teriam querido ter o bônus da benesse sem o ônus do aumento das próprias despesas, terceirizando a conta”. É apenas mais uma história a ilustrar o pensamento mágico predominante no que diz respeito ao orçamento público, de forma geral, e ao financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS), em particular. Em um ano eleitoral, e considerando os resultados das pesquisas, tudo indica que lamentavelmente não será a última.