Essa colocação resume o grande divisor na organização da vida planetária no presente. Vista na forma literal do título, aquela de pergunta, de questão ainda em suspenso, ela apresenta uma escolha dentro de possibilidades em debate. Essa a situação dominante no Brasil no momento – mas já não é a possibilidade mundial de referência.
Cada vez mais aparecem situações nas quais se passa do debate para a intervenção real. Em vez de ser uma pergunta, um assunto para discussões, um apelo para o mundo das opiniões, o meio ambiente efetivamente está se tornando guia para atos e condutas. Um exemplo simples: no mês passado, o governo sueco emitiu uma determinação. Por ela, carros com motor a combustão serão proibidos de circular nas cidades do país já a partir de 2025.
Esta é uma norma, na precisa definição do historiador do Direito português Nuno Gomes da Silva: “A regra jurídica impõe-se coativamente aos destinatários, impõe-se sob ameaça de coação. Dada a intensidade do normativismo jurídico, uma sociedade só concede juridicidade àquelas normas ou regras que considera essenciais à sua sobrevivência ou à civil convivência de seus membros”.
A ameaça de coação leva diretamente do campo jurídico para o social. Na definição clássica de Max Weber, a característica essencial do Estado é a capacidade de exercer o monopólio do uso legítimo da força. Para isso, pode colocar a polícia e o sistema judiciário na perseguição de quem não cumprir a norma.
A nova norma sueca muda radicalmente a fruição de um direito. Até a véspera dela, um proprietário de automóvel entendia o emprego de seu bem como uma forma de exercer pacificamente sua franquia de ir e vir – estendida para sua propriedade motorizada. Para impor a norma, o legislador teve de fazer um balanço entre valores diversos: estado da natureza, de um lado; direito de ir e vir, mais direito de propriedade, do outro. Assim, a nova opção normativa é também uma decisão entre valores: o meio ambiente foi considerado mais essencial para a sobrevivência da sociedade sueca que a antiga interpretação dos direitos de ir e vir, mais a intocabilidade da propriedade – além de afetar patrimônios, desvalorizando carros.
O tempo de discussão acabou. Na situação prévia, tanto a defesa da liberdade na ação do homem sobre a natureza como aquela da necessidade de limites para que o equilíbrio ambiental não sofra uma ruptura destruidora eram opiniões livremente colocadas no ambiente das ideias. E, nessa condição, tanto uma posição quanto a outra podiam ser expressas sem qualquer possibilidade de apelo à ação coercitiva do Estado.
Nesse tempo de debate, os ambientalistas podiam apresentar apenas os chamados argumentos contrafactuais, ou hipotéticos. O mais conhecido deles traz a fórmula consagrada: “Se as emissões não forem diminuídas em X por cento, a temperatura aumentará Y graus”. Praticamente todas as transformações derivadas do ambientalismo que vêm acontecendo por todo o planeta nos últimos anos realizaram-se com base na combinação entre hipóteses contrafactuais e programas voluntários feitos em torno delas. Só podia ser assim, quando não havia possibilidade de coação estatal a fatos como a circulação de veículos.
Com a norma, os pesos se inverteram. Até a véspera dela, a vantagem institucional no debate sueco estava do lado dos defensores do direito de ir e vir com seus carros. Em caso de conflito mais sério com ambientalistas, podiam convocar o Judiciário ou a polícia para apoiar o seu ponto de vista. Agora, ambientalistas poderão apelar para a lei, na hora de proibir o trânsito de veículos.
Atuando sobre um conflito de valores evidente, ainda assim a norma sueca foi recebida com grande tranquilidade pela população do país. A razão é singela: o debate prévio, o tempo de maturação na opinião, resultou no fato de que a imensa maioria dos habitantes do país concorda com a mudança na escala dos valores prioritários.
Antes de ser norma, o ambientalismo se tornou costume. E o costume, na grande definição de Rousseau, “é a lei maior, aquela que se grava no coração”. O costume da responsabilidade ambiental, gravado lentamente nos corações suecos, faz com que a lei seja vista pelo cidadão como expressão correta das condições essenciais da vida naquela sociedade.
A partir da norma vem outra etapa. O ônus do convencimento mudou de grupo social. O ambientalismo agora tem a seu lado a lei. Um privilégio. Já os defensores dos carros a combustão foram relegados ao limite das hipóteses contrafactuais para convencer. Sob o peso de poderem ser enquadrados como contraventores.
Para quem acha o exemplo exótico: o Brasil se comprometeu internacionalmente com normas ambientais, com suas metas pós Acordo de Paris. Mas continua se portando como se fossem leis para inglês ver – para lembrar a explicação do comprometimento com o fim do tráfico de escravos a partir de 1831. Os ingleses viram – e editaram a norma do Bill Aberdeen, mandando sua Marinha para forçar o cumprimento da palavra. Ganhar corações para o costume é uma forma de transformação. A coação, outra. A troca de enquadramento normativo entre liberdade e obediência pode ser rápida, em tempos de mudança.
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ESCRITOR, É MEMBRO DA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS (ABL)