Confusão, desinformação ou ignorância alimentada pelo radicalismo? É o que se pode imaginar quando alguém com grande poder econômico e imensa influência no governo norte-americano acusa a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional, a Usaid (United States Agency for International Development), de “organização criminosa” envolvida “em trabalhos sujos da CIA” e manipulada pela “esquerda radical”.
Quando se trata do bilionário Elon Musk, pode ser tudo isso e talvez mais. Considerado o homem mais rico do mundo, Musk é dono da SpaceX, da Tesla e do X (antigo Twitter) e um dos cofundadores da OpenAI. Atualmente, chefia o Departamento de Eficiência Governamental (Doge), criado para dar conselhos ao presidente americano, Donald Trump, sobre onde cortar gastos públicos. Segundo Musk, além dos “trabalhos sujos”, a Usaid promovia a censura da internet e apoio a partidos políticos e imprensa esquerdista em todo o mundo, razão pela qual “é hora de ela morrer”. Dias antes, Trump dissera que a Usaid era administrada por “lunáticos radicais”.
Papagaio de ideias ultraconservadoras geradas nos Estados Unidos, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) reagiu prontamente. Foi rápido no gatilho, para usar uma expressão que lhe cai bem. Na condição de secretário de Relações Internacionais e Institucionais de seu partido, divulgou nota no dia seguinte às declarações de Musk para dizer que o Congresso Nacional precisa investigar a atuação da Usaid no Brasil. Repetindo a opinião de um ex-funcionário do Departamento de Estado, Bolsonaro afirmou que, no governo Biden, a Usaid financiou ONGs e movimentos políticos “com o objetivo de moldar narrativas e interferir na democracia brasileira”.
Tudo isso soa hoje como ironia, pois lembra críticas que a esquerda fazia à agência. A atuação da Usaid está longe de ser consensual. Na verdade, é coberta de controvérsias.
A agência foi criada em 3 de novembro de 1961, após a aprovação da Lei de Assistência Externa. Era o auge da guerra fria. O presidente John Kennedy estava em seu primeiro ano de mandato. Dois anos antes, a revolução cubana de Fidel Castro e seus companheiros, que depôs a ditadura de Fulgencio Batista, passara a inspirar muitas forças políticas nas Américas. Isso preocupava Washington. Em abril de 1961, já no governo Kennedy, a CIA, com o apoio das Forças Armadas dos Estados Unidos, organizou um grupo paramilitar de exilados cubanos para depor o governo de Fidel. A operação, conhecida como invasão da Baía dos Porcos, fracassou completamente. No ano seguinte, ocorreria a crise dos mísseis, o episódio mais tenso de toda a guerra fria, que terminou com a concordância da União Soviética à exigência dos Estados Unidos de suspender a instalação de mísseis em Cuba.
A criação da Usaid serviria para reforçar a política externa dos Estados Unidos. O papel da agência era coordenar a distribuição da ajuda para países em situações de conflito ou de emergência em todo o mundo, com o objetivo de ampliar a influência dos Estados Unidos e conter o avanço de ideias consideradas esquerdistas e o fortalecimento da União Soviética no cenário mundial.
Tendo interpretado essa missão com muita frouxidão, a Usaid agiu algumas vezes fora dos parâmetros convencionais de uma agência governamental para ações no exterior.
No Brasil, colaborou de modo decisivo para a reforma do ensino superior, por meio dos acordos Ministério da Educação (MEC)-Usaid, fortemente combatidos pelos estudantes e boa parte dos professores nas ruas e nas universidades. Também apoiou iniciativas que deram grandes resultados. Uma delas é a criação da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) em 1973, instituição fundamental para o desenvolvimento da agropecuária brasileira nas últimas décadas. Outras são os programas de bolsas no exterior, que propiciaram a muitos a obtenção de títulos acadêmicos em renomadas universidades estrangeiras e às instituições de ensino a modernização de seus currículos e linhas de pesquisas e estudos.
Mas, no período mais sombrio da ditadura militar, no início da década de 1970, a Usaid financiou programas de treinamento de policiais brasileiros, inclusive no centro mantido pelos Estados Unidos no Panamá para a preparação de agentes da repressão política especializados em métodos violentos de interrogatório, especialmente tortura. Talvez aqui, sim, se aplique a expressão “organização criminosa” utilizada por Elon Musk.
Atualmente, com a guerra fria tendo se tornado tema de historiadores, a Usaid presta assistência humanitária e para o desenvolvimento de outros países, principalmente por meio de repasse para ONGs, governos e organismos internacionais, como informou o jornal The Washington Post. No ano fiscal de 2023, a agência administrou US$ 40 bilhões em verbas para cerca de 130 países. Para Musk e outros ultraconservadores, isso, sim, deve ser crime.
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JORNALISTA, É AUTOR, ENTRE OUTROS, DO LIVRO ‘O SÚDITO (BANZAI, MASSATERU!)’ (EDITORA TERCEIRO NOME) E PRESIDENTE DO CENTRO DE ESTUDOS NIPO-BRASILEIROS (JINMONKEN)