“Geralmente, quando se fala em propina, é pelado e dentro da piscina”, disse o presidente Jair Bolsonaro à porta do hospital Vila Nova Star, em São Paulo, após passar quatro dias de folga, desfilando sem máscara pelos corredores, invadindo sem licença a intimidade de pacientes. E recebendo visitas da mulher, Michelle, e do maquiador dela. Como de hábito, é mentira: não há relação histórica ou factual entre corrupção, nudez e água.
A frase só se justifica pela rima, que não é rica nem pobre, mas podre, como a natureza escatológica das falcatruas. Contém a patranha de outras dez lorotas que lhe sucederam e lógica similar à frase em que o ignorante (de parca inteligência) e ignorantista (quem nega o óbvio) a apoiou: “Se eu estivesse na Saúde, eu teria apertado a mão daqueles caras todos. Ao receber (os representantes) ... ele não estava sentado à mesa. Geralmente, teria uma fotografia dele sentado à mesa e negociando. E se fosse propina, (Pazuello) não daria entrevista, meu Deus do céu, não faria aquele vídeo”. Em geral, feio não é roubar, é ser flagrado.
De fato, ninguém tomaria conhecimento da bandalheira encenada no Ministério da Saúde, em plena vigência de gemelares desgoverno Bolsonaro e pandemia da covid-19, se não houvesse a comissão parlamentar de inquérito do Senado para investigá-la. Depoimentos nela tomados revelaram que delongas nas transações com laboratórios na compra de vacina esclarecem que nunca houve razão ideológica (negacionismo) para isso, mas acertos com picaretas ralé vendendo doses inexistentes de imunizantes (negocionismo) sem o “atrapalho no trabalho” (apud John Lennon) do compliance. Dois bandos recebiam, sob a chefia do intendente incompetente Eduardo Pazuello, atravessadores com reconhecida experiência em negociar com governos e não entregar a mercadoria. Segundo os primeiros depoentes da CPI, o QG de um era a sala do secretário executivo, coronel da reserva do Exército Elcio Franco. Outro se subordinaria ao civil Roberto Dias, egresso do Paraná.
O primeiro compliance zero a oferecer doses com sobrepreço atraente, Francisco Emerson Domiciano, mora em Brasília, “paraíso dos lobistas, dos espertalhões”, segundo Bolsonaro. Mas também tem endereços em São Paulo. Sua empresa Global tinha vendido remédios caríssimos para doenças raras ao Distrito Federal, à época em que o paranaense Ricardo Barros foi ministro da Saúde, no governo Temer. Nunca entregou o que vendeu, nunca devolveu o que recebeu. O líder do governo no Senado, Fernando Bezerra Coelho, atestou sua “lisura”, por nunca ter sido condenado. O primogênito da famiglia presidencial, Flávio, levou-o ao presidente do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Gustavo Montezano, para apresentar um projeto de banda larga para o Nordeste, uma “boa ideia” de uma de suas 13 empresas, a Xis Internet Fibra. Flávio mudou-se do Rio para Brasília em 2019. A Precisa Medicamentos intermediou compra de 20 milhões de doses de AstraZeneca, parceira da Fiocruz, por R$ 1,67 bilhão. A verba foi empenhada, o contrato foi suspenso e só agora cancelado. E o laboratório britânico desconhece qualquer entrega de tal vulto. A famiglia em primeiro lugar.
Depois da famiglia, Cristo, conexão entre o clã e o reverendo Amilton Gomes de Paula, presidente do Serviço Nacional de Assuntos Humanitários (Senah, antes Senar, de religiosos). A venda sem compliance foi muito mais volumosa (e, claro, mais vantajosa): 400 milhões de doses. O atravessador é o mais distante dos lobistas de Brasília: Herman Cardenas, dono da Davati, loja de material de construção, e de um escritório de negócios imobiliários, no Texas, EUA. Seu representante no Brasil, Cristiano Carvalho, mora em São Paulo, mas mostrou adestramento nos costumes dos “lobistas” de Bolsonaro: para ele, não existiu corrupção, mas “comissionamento”. Foi nesse negócio que o cabo PM-MG Luiz Paulo Dominguetti acusou Dias de ter cobrado um centavo de dólar de “comissão” por dose de AstraZeneca, de fornecimento “garantido” por um médico amigo do texano da origem do “rolo”.
A World Brands Distribuição, cujos representantes estrelam o vídeo com Pazuello, é de Jaime José Tomaseli, um dos três condenados pela Justiça Federal de Itajaí (SC), a milhares de quilômetros da capital federal, em 2014, por participar de conluio que fraudou documentos de importação de produtos.
O parco espaço destinado a este artigo não comporta a lista dos oficiais da ativa e da reserva das Forças Armadas envolvidos nas negociações tenebrosas que explicam parte considerável dos mais de 540 mil óbitos por covid-19 que teria sido evitada com o uso de imunizantes de laboratórios com compliance: Fiocruz, Butantan, AstraZeneca, Sinovac, Pfizer, Moderna e Johnson.
A diferença dos recentes “lobistas” em relação aos antigos é o ponto comum dos novos: o bolsonarismo de raiz pôs em contato o cabo PM de Minas na ativa e em horário de expediente, Dominguetti, e o “terrivelmente evangélico” Amilton sem agá. O resto é papo de latrina, outra rima podre de propina.
JORNALISTA, POETA E ESCRITOR
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