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Mergulho na era das incertezas

A pandemia reduziu o IDH global após décadas de evolução. Mais que um desvio momentâneo, queda acentua um complexo de incertezas que traz riscos, mas também oportunidades

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Por Notas&Informações
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O primeiro relatório do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da ONU a medir os impactos da pandemia foi publicado com o sugestivo título: Tempos Incertos, Vidas Instáveis – Construir o futuro num mundo em transformação.

O IDH caiu em mais de 90% dos países. Seria tentador considerar a pandemia, ou a guerra na Ucrânia, como turbulências: bastaria segurar firme, à espera do retorno à normalidade. Afinal, nas últimas três décadas indicadores como saúde, educação e padrão de vida melhoraram continuamente. Mas, argutamente, os pesquisadores descrevem a pandemia mais como uma “janela para uma nova realidade” do que um desvio da vida de sempre.

Há milênios os humanos são impactados por pestes, guerras ou desastres naturais. Mas, agora, “novas camadas de incertezas estão interagindo para criar novos tipos de incertezas – um novo complexo de incertezas nunca visto na história da humanidade”. O estudo destaca três “camadas”: os riscos do chamado “Antropoceno” – em que os humanos se tornaram uma força maior de transformações planetárias –; a transição para novas formas de organização das sociedades industriais; e a intensificação da polarização política e social, nos países e entre eles, facilitada por novas tecnologias de comunicação.

Esse complexo é chave para elucidar um cenário enigmático: as percepções das pessoas sobre suas vidas e sociedade contrastam com a elevação objetiva do bem-estar humano no último século. Pesquisas em mais de 14 milhões de livros publicados nesse período mostram um aumento acentuado em expressões de angústia e ansiedade – intensificadas desde 2012. Mais do que uma “distorção ótica”, esse contraste convida a reavaliar as noções de “desenvolvimento”.

A pandemia ofereceu um vislumbre do potencial de desenvolvimento humano – mas também evidenciou a lacuna entre esse ideal e a realidade. Estima-se que o extraordinário desenvolvimento das vacinas tenha salvado 20 milhões de vidas em um ano. Mas igualmente extraordinário é o número de vidas desnecessariamente perdidas pela imensa desigualdade no acesso aos imunizantes.

O Brasil ilustra muitos desses contrastes. Com 2,7% da população mundial, o País registrou 10,5% das mortes por covid, mesmo contando com o maior sistema de saúde pública do mundo e um programa de vacinação com boa reputação. Como se sabe, essas vantagens comparativas foram sabotadas pelo presidente da República, Jair Bolsonaro, por razões ideológicas. O impacto no índice de mortalidade foi o principal fator a fazer com que a retração do IDH brasileiro fosse maior que a média mundial.

Mas há disfunções estruturais. O IDH nacional – 0,754, de 0 a 1 – é considerado elevado e está acima da média mundial (0,732). Mas, analogamente à “armadilha da renda média”, há uma “armadilha do IDH médio”. Quando o indicador é ajustado à desigualdade, ele despenca para 0,576, espantosos 23,6%.

Períodos de transição despertam apreensões, mas também oportunidades. É certo que “não está tudo bem”, mas nem por isso “tudo está perdido”. Assim como o mundo aprendeu a conviver com a covid, precisa aprender a conviver com esse complexo de incertezas. Isso significa mais que mera acomodação. Para concretizar todas as potencialidades desse mundo em transição, o estudo destaca três alavancas: investimentos que o preparem para riscos como novas pandemias ou as mudanças climáticas; seguridade e fortalecimento de serviços universais como educação e saúde para proteger contra contingências; e inovação – tecnológica, econômica e cultural – para responder criativamente a essas instabilidades, transformando-as em oportunidades.

Não há espaço para fatalismo. Crises agudas relembram, nas palavras da poeta e ativista Maya Angelou, citadas no relatório, a importância de “se trazer todas as nossas energias a cada encontro, de permanecer suficientemente flexíveis para notar e admitir quando aquilo que esperávamos que acontecesse não acontece”. E ela arremata: “Precisamos lembrar que fomos criados criativos e podemos inventar novos cenários tão frequentemente quanto eles são exigidos”.