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Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras e ex-ministro da Justiça, Miguel Reale Júnior escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião | Democracia e diversidade

Infantaria do 8/1 foi composta por pessoas simples, movidas por temas de costumes que se misturavam ao medo inoculado do ‘comunismo identitarista’

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Atualização:

Dia de sol em Brasília, Lula da Silva subia a rampa do Palácio do Planalto junto a representantes da multiplicidade de nossa população, como o cacique Raoni Metuktire, o menino preto e a catadora de papéis, sendo difícil prever, nessa festa da democracia, que o palácio seria invadido por horda fantasiada com as cores da Pátria.

Causa tristeza relembrar o vandalismo destruidor das sedes dos Três Poderes, mas é revigorante saber ter sido a oportunidade de reafirmação do Estado de Direito. Oito de janeiro é a data da resiliência democrática.

Como se deram os fatos? Houve autores intelectuais, financiadores, instigadores e executores, ou seja, pessoas por detrás dos acontecimentos, e milhares na linha de frente, muitos seduzidas pelo discurso de ódio, o que não os desculpam em nada. A cada categoria foi instaurado um inquérito.

Ao longo de seu mandato, Jair Bolsonaro lançou desconfianças no processo eleitoral, gerando a convicção de que a vitória de Lula seria fruto de falcatrua contábil permitida pela Justiça.

Finda a eleição, começou o clamor por intervenção federal (disfarce da intervenção militar), alimentado pela ideia de as Forças Armadas serem poder moderador, para impedir a assunção da esquerda terrivelmente laica e identitarista.

A permissividade do Exército na permanência de pessoas acampadas na frente de quartéis, agitando bandeiras, rezando e concitando transeuntes a resistir à posse de Lula, levava à impressão de que a agitação contava com o apoio da força militar.

Em 12 de dezembro de 2022, dia da diplomação de Lula, foi deflagrado movimento que incendiou carros e ônibus, tentando-se invadir a sede da Polícia Federal em Brasília. O grupo era composto, na maioria, pelos acampados em barracas em frente ao Exército, onde havia banheiros químicos e alimentação fornecidos por empresários. Coronel do Exército impediu que fosse cumprida pela Polícia Militar (PM) a ordem de desmantelar o acampamento intervencionista em Brasília, sob o argumento de a frente do quartel ser área militar.

Na véspera do Natal, Alan Diego dos Santos Rodrigues e George Washington de Oliveira Sousa, empresário financiador, tentaram fazer caminhão explodir no Aeroporto de Brasília. George Washington foi preso dia 24, e confessou ter participado dos atos violentos de 12 de dezembro, quando policiais militares lhe contaram que não reprimiriam o vandalismo, dando a entender estarem do lado de Bolsonaro, sendo em breve “decretada a intervenção” (veja-se em portal brasil61.com de 25/12/2022). No acampamento em frente ao Exército foram urdidas as diversas investidas contra a democracia: as de 12 e 24 de dezembro e a de 8 de janeiro.

As imagens dos PMs indiferentes ao avanço da multidão no dia 8 de janeiro bem revelam, também, o comprometimento da Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal na tentativa do golpe de Estado.

Vistos os autores mediatos, cumpre identificar o tipo de pessoa que compôs em 8 de janeiro a infantaria que caminhou em direção às sedes dos Três Poderes. Nessa caminhada havia uma mínima organização, pois os invasores se dividiram, indo um grupo para cada sede, como primeiro passo para a entrada das Forças Armadas e o resgate da liberdade.

Como retrato dessa infantaria, pode-se tomar por exemplo a Ação Penal 1.067 do Supremo Tribunal Federal (STF), na qual alguns invasores foram condenados a largas penas por tentativa de golpe de Estado e abolição violenta do Estado Democrático.

Os réus são pessoas de classe média baixa, sem trajetória política, mobilizadas pela internet: Raquel, cozinheira; Felipe, nutricionista; Cibele, professora aposentada; Charles, pedreiro; Orlando, desempregado; Gilberto, corretor de seguros; Fernando, psicólogo; Fernando, operador de caixa de supermercado.

O que em síntese disseram em interrogatório? Explicaram: eram contra o aborto, a legalização das drogas e o banheiro único para crianças, mas dotados de especial intenção, derrubar o governo empossado. É suficiente lembrar as palavras da ré Cibele, a professora aposentada: “O objetivo era apenas ocupar os prédios, sentar e esperar até vir uma intervenção militar para não deixar Lula governar”.

Como se vê, a infantaria era composta por pessoas simples, movidas por temas relativos a costumes – aborto, drogas, banheiro único, família – que se misturavam ao medo inoculado do “comunismo identitarista”, que valoriza identidades particulares: raça, orientação sexual.

Assim, a internet viabiliza a reunião de desconhecidos, e professora, cozinheira, pedreiro e psicólogo se irmanam sob a ilusão de serem a linha de frente que abre caminho para a sagrada intervenção. Se os “perigos” disseminados acerca do governo Lula foram desfeitos com o sucesso econômico e respeito à liberdade, perdura em alguns, no entanto, o temor à diversidade, dando azo à mobilizadora pauta conservadora. A diversidade, para muitos, traz insegurança, vide formas de conduta alternativas no campo dos costumes ganharem reconhecimento.

A democracia exige superar o populismo internético preconceituoso com o diferente e respeitar os direitos de cada um por sua qualidade de cidadão, seja diferente ou não.

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ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR SÊNIOR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA

Opinião por Miguel Reale Júnior

Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras e ex-ministro da Justiça, Miguel Reale Júnior escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

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