Desde 2015, participo do programa de focas do Estadão (Curso Estadão de Jornalismo), com duas aulas sobre noções fundamentais de lógica. O objetivo é analisar, a partir da reflexão sobre o raciocínio humano e suas relações, o trabalho intelectual do jornalismo. Ao longo dos anos, o conteúdo das aulas foi se modificando. A massiva desinformação não apenas aumentou a relevância do tema, como deu ao debate contornos próprios. Mas a provocação de fundo feita aos novos jornalistas continua igual. Quais são os aspectos da realidade contemporânea que nós temos mais dificuldade de ver, de compreender e de explicar? O que, mesmo estando diante dos nossos olhos, não enxergamos, não assimilamos ou não entendemos – e continuamos repetindo lugares-comuns, ideias inconsistentes, preconceitos?
Mais do que identificar os específicos pontos cegos de cada um – isso é tarefa de anos, de décadas, não de duas aulas –, a finalidade é suscitar a reflexão sobre as causas de nossas incompreensões, de nossas cegueiras, detendo especificamente em duas delas.
Em primeiro lugar está a sensação – instaurada, muitas vezes, na faculdade e no início da vida profissional – de certo domínio cognitivo sobre o mundo. Sabemos que temos ainda muito a aprender, mas os anos de estudo e as experiências da vida parecem nos dar acesso aos grandes mecanismos de funcionamento da sociedade, com suas leis e suas dinâmicas. Ao distanciar-se das visões próprias da infância e da adolescência, fortemente moldadas pelo ambiente familiar e escolar, o despertar da maturidade vem habitualmente acompanhado de uma nova liberdade, de uma nova potência e de uma nota de autossuficiência.
Esse processo é positivo, contribuindo para nossa autonomia. Mas é preciso sabedoria, para não se contentar com o conhecimento adquirido. Por muito que tenhamos lido e estudado, haverá sempre deficiências formativas. Cada um de nós terá as suas. E elas dificultam e limitam nossa compreensão do mundo. Como entender o mundo de hoje sem conhecer a fundo, por exemplo, suas matrizes filosóficas?
Talvez alguém possa pensar que isso é muito abstrato. O que lhe preocupa é a realidade concreta brasileira. Mas, também sob esse novo foco, destacam-se nossas muitas e não menores deficiências formativas a respeito do nosso país. Somos capazes de explicar a nós mesmos as razões da nossa específica realidade social, cultural, política e econômica? O que sabemos da escravidão, dos povos indígenas ou do tenentismo, por exemplo? O que conhecemos sobre o processo social, político e econômico que desembocou na Constituição de 1988? O que sabemos da formação do nosso Judiciário e do nosso Legislativo?
Eis o primeiro ponto que as aulas de lógica se propõem a abordar: para pensar bem, para escrever bem, é preciso ver bem – e isso exige ler e estudar sempre mais. Não se pode dizer basta. E a leitura deve incluir, de maneira especial, a literatura. No livro Shakespeare: a invenção do humano, Harold Bloom mostra como o Bardo configurou toda a percepção posterior sobre o fenômeno humano. E como não pensar em Homero, Dante, Cervantes, Tolstoi, Woolf, Austen, Joyce, Kafka, Machado e tantos outros? Sem literatura, só com uma estrita e estreita racionalidade analítica, corremos o risco de deixar os nossos pontos cegos intactos ao longo da vida. E isso relaciona-se diretamente com a outra importante causa de nossas incompreensões: as limitações da perspectiva pessoal, presentes também em pessoas com incrível erudição e cultura.
Todos nós vemos e falamos, vivemos e experimentamos a vida, conhecemos e relacionamo-nos com os outros a partir de um determinado lugar no mundo, por meio de nossa específica identidade, imersos numa concreta realidade familiar, acadêmica, profissional e social. Nossa peculiar perspectiva capacita-nos a falar com propriedade de vários assuntos, mas necessariamente limita e distorce nossa compreensão sobre muitos outros temas. Desconsiderar a interferência do nosso específico lugar no mundo acarreta grave fragilidade cognitiva.
É natural, por exemplo, que quem sempre trabalhou no setor privado tenha dificuldade para compreender o funcionamento do setor público. Vê aquele universo com as lentes da própria experiência, o que pode aportar contribuições, mas também gera distorções. E o mesmo ocorre com a situação inversa, com quem sempre trabalhou no setor público, ao olhar o mundo privado.
É preciso ler e estudar, mas não basta fazer isso. Essas atividades devem ampliar, questionar, contextualizar, qualificar o nosso olhar. Se for apenas para consolidar o que já pensamos – o que achamos que sabemos –, o estudo pode chegar a ser contraproducente. Aqui, a disciplina filosófica da lógica desemboca necessariamente no humano. Para ver e pensar bem, são necessários o diálogo, a convivência com o diferente, a amizade com quem pensa de forma diversa. Só com o afeto – só com a confiança e a admiração geradas pela conexão afetiva – somos capazes de ver com os olhos dos outros e, assim, enxergar aquilo que, sozinhos, éramos incapazes de ver.
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ADVOGADO