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O ocaso da democracia em El Salvador

Destituição de juízes e do procurador-geral amplia o déficit de democracia no país

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Por Notas & Informações
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Uma das primeiras ações do novo Congresso de El Salvador, agora com amplíssima maioria favorável ao presidente Nayib Bukele (61 das 85 cadeiras são ocupadas por parlamentares governistas), foi destituir os cinco juízes da Câmara Constitucional da Suprema Corte salvadorenha e seus suplentes, além do procurador-geral do país, Raúl Melara.

As autoridades destituídas eram tidas como hostis à agenda política de Bukele, sobretudo no que concerne às ações de enfrentamento da pandemia de covid-19. A pretexto de frear o avanço do vírus em El Salvador, o presidente determinou um confinamento que, da forma como foi concebido e implementado, foi interpretado como uma ação para sufocar manifestações contrárias à sua administração. Tanto Melara como os juízes da Suprema Corte que foram destituídos serviam como anteparo institucional às investidas autoritárias do Executivo.

Bukele não tardou para celebrar a decisão do Congresso. “E o povo salvadorenho, por meio de seus representantes, disse: destituídos!”, escreveu o presidente no Twitter, imediatamente após o término da sessão legislativa. Bukele ainda ironizou os que o classificaram como autoritário. “Se eu fosse autoritário como dizem, os teria fuzilado, e não destituído. O povo não nos enviou para negociar. Estão saindo, todos”, disse.

Este naipe de democrata mereceu elogios públicos do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP). Também pelo Twitter, o chamado “03” escreveu que “o Congresso (de El Salvador) destituiu todos os ministros da Suprema Corte por interferirem no Executivo, tudo constitucional”. Para arrematar, o deputado que um dia acreditou reunir as credenciais para ser o embaixador do Brasil nos Estados Unidos sugeriu aos juízes salvadorenhos que “se quiserem ditar políticas públicas, que saiam às ruas para se elegerem”.

É evidente que a manifestação do filho em apoio a uma ação claramente antidemocrática em país estrangeiro reflete os sonhos nada recônditos do pai, o presidente Jair Bolsonaro, de ver algo semelhante aplicado no Brasil. Dia sim e outro também, convém lembrar, Bolsonaro mente à Nação quando afirma que o Supremo Tribunal Federal (STF) tolheu seu poder de agir no curso da pandemia. Inolvidável também é o respaldo que Bolsonaro dá a manifestações golpistas que pedem abertamente não só a cassação de ministros do STF, mas também sua prisão.

O mundo civilizado condenou a ação do Congresso salvadorenho. A vice-presidente dos Estados Unidos, Kamala Harris, disse que seu país “deve responder” à destituição dos juízes da Câmara Constitucional e do procurador-geral de El Salvador, considerado um aliado de Washington no combate à corrupção e ao narcotráfico. Embora não tenha detalhado a que tipo de resposta se referia, em evento do Council of the Americas, Harris afirmou que “o Parlamento de El Salvador atuou para minar a atuação do principal tribunal do país”, o que, em suas palavras, “é algo crítico para a saúde de uma democracia”.

A interferência direta no Poder Judiciário salvadorenho também provocou reações da União Europeia (UE) e da Organização das Nações Unidas (ONU). O alto representante da UE para Relações Exteriores, Josep Borrell, afirmou que “a decisão do Congresso coloca em risco o funcionamento do Estado Democrático de Direito em El Salvador”. O secretário-geral da ONU, António Guterres, pediu que Bukele “respeite a Constituição de seu país”.

É muito provável que Bukele siga insensível aos apelos da comunidade internacional e da oposição local e avance com seu plano de implementar uma autocracia em El Salvador, sobretudo a partir de agora, com os Poderes Legislativo e Judiciário subjugados pelo Poder Executivo. Para tanto, o presidente conta com o apoio de nada menos do que cerca de 90% da população, cansada de décadas de alternância entre os dois partidos mais tradicionais no país, a Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN) e a Aliança Nacional Republicana (Arena).

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