O colapso dos sistemas sanitários latino-americanos tomados de assalto pelo coronavírus expõe da maneira mais brutal o fato de que os países gastam pouco e gastam mal com saúde, obrigando os cidadãos que podem a consumir boa parte de sua renda com sistemas privados custosos, e aumentando a distância em relação aos desvalidos. Ainda tomará um tempo para o cômputo dos custos humanos, sociais e econômicos da covid-19, mas sem dúvida serão catastróficos, tanto mais que os altos índices de desigualdade e informalidade na região a vulneram mais do que acontece em outras partes do mundo. A radiografia da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) - Um Olhar sobre a Saúde: América Latina & Caribe - expõe as escandalosas comorbidades da estrutura sanitária na região. Em 2017, os gastos com saúde na América Latina foram de US$ 1.000 por pessoa, apenas ¼ dos gastos dos países da OCDE. A América Latina investe 6,6% do PIB com saúde, enquanto a média da OCDE é de 8,8%. Os gastos públicos e com seguros obrigatórios representam 54,3% do total, significativamente menos do que os 73,6% na OCDE. Isso mostra o quanto a saúde na América Latina depende das despesas pessoais de seus cidadãos. Dos gastos totais, 34% vêm dos bolsos dos latino-americanos, enquanto a média na OCDE é de 21%. Tudo isso resulta em baixa capacidade de atendimento e serviços ineficientes. Para cada 1.000 pessoas, a região tem 2 médicos e 2,1 leitos - a média na OCDE é de 3,5 médicos e 4,7 leitos. Antes da covid-19, a média de leitos de UTI em 13 países latino-americanos cotejados era de 9,1 para cada 100 mil habitantes, muito abaixo da OCDE: 12 leitos. O Brasil é um dos poucos países acima dessa média. Contudo, apenas 40% das UTIs são geridas pelo SUS. Como no resto da América Latina, a maioria das UTIs é da rede privada e está concentrada nas áreas urbanas mais ricas. A OCDE alerta que “a alocação precária de recursos na saúde está desacelerando, se não paralisando, o progresso rumo à cobertura universal de saúde”. Por exemplo, os sistemas de informação - essenciais para responder com agilidade a crises sanitárias agudas como a atual pandemia - são severamente defasados. Em 22 países cotejados, 10% de todas as mortes não são computadas nos registros de mortalidade. Esta opacidade não só prejudica o diagnóstico das condições sanitárias da população, como é um convite à corrupção. Com efeito, uma pesquisa em 12 países revela que 42% dos entrevistados consideram os sistemas de saúde corruptos. O pânico social e as necessidades impostas pela pandemia - como medidas decididas no afogadilho e compras não licitadas - podem agravar este quadro. No Brasil, a cada dia despontam novos indícios de fraudes na aquisição de respiradores, medicamentos e outros insumos. O resultado é uma população repleta de comorbidades e vulnerável a todo o tipo de moléstias. Muitos países não atingem os níveis mínimos de imunização, expondo a população a surtos de doenças evitáveis, como o sarampo, que, no Brasil, tem crescido alarmantemente. Isso indica as dificuldades que a região encontrará para disponibilizar a futura vacina para a covid-19 à população. De resto, há uma série de fatores de risco críticos. A obesidade afeta 8% das crianças com menos de 5 anos, 28% dos adolescentes e quase 60% dos adultos, aumentando os riscos de doenças crônicas ou infecciosas, como a covid-19. A OCDE enfatiza alguns desafios para que os sistemas sobrevivam à pandemia e se preparem para futuros surtos: concentrar atenção na vigilância de outras doenças infecciosas; alavancar soluções digitais para detectar e tratar a covid-19; coordenar esforços com outros setores como finanças, educação ou transporte para otimizar recursos e subsidiar as decisões; e promover a cooperação internacional para pesquisa e desenvolvimento. Em todas essas medidas é essencial levar em conta as desigualdades crônicas para, na medida do possível, compensá-las com uma distribuição de recursos mais equitativa.