Imagem ex-librisOpinião do Estadão

Trump se torna o centro da eleição

Em debate, Kamala Harris consegue transformar a disputa num referendo sobre o ex-presidente, e não sobre o atual, e ainda se livrou de ter de explicar seus planos, de resto desconhecidos

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Por Notas & Informações
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Na acirrada disputa pela presidência dos Estados Unidos, o contraste entre o primeiro e o segundo debates entre os candidatos não poderia ser maior. Há 50 dias, o presidente Joe Biden, postulante à reeleição pelo Partido Democrata, teve um desempenho tão desastroso que se viu obrigado a desistir da disputa. A nova candidata democrata, a vice-presidente Kamala Harris, já havia recolhido com sucesso, na convenção do partido, todos os votos democratas deixados pelo caminho. Foi em meio a uma disputa cabeça a cabeça que ela entrou no debate com Donald Trump – e venceu. Não por nocaute, mas com uma margem confortável de pontos.

O debate expôs as estratégias das campanhas. A dos republicanos é implicar Harris com o governo impopular de Biden e assustar os moderados com seu histórico de apoio a políticas radicais das elites esquerdistas, ou forçá-la a negá-las, e então denunciar sua inconsistência. Sobretudo, o maior temor dos estrategistas era que Trump não perdesse a calma. O principal desafio de Harris era mostrar aos eleitores um caráter sólido, apto a governar o país, depois, evitar comprometer-se com políticas que pudessem soar radicais e, por fim, expor a personalidade volátil e temerária de Trump.

Essa personalidade já foi naturalizada na opinião pública. Como candidato bem conhecido, Trump era o que tinha menos a perder, mas, o pouco que tinha, perdeu. Como candidata menos conhecida, Harris era quem tinha mais a ganhar, e ganhou. Considerando as duas estratégias, Harris conseguiu expor a vaidade de Trump. Trump fracassou em expor a vacuidade de Harris. Ele não conseguiu forçá-la a defender suas políticas. Ela o induziu a cair na provocação.

Como notaram os analistas do New York Times L. Lerer e R.J. Epstein: “Harris explorou habilmente a maior das fraquezas de seu oponente. Não o seu histórico. Não suas políticas divisivas. Não sua história de declarações inflamatórias. Ao invés disso, alvejou uma parte muito mais primitiva dele: seu ego”. Seja declarando que líderes mundiais dizem que ele é uma “vergonha”, seja sugerindo que sua fortuna não era a de um “self-made man”, mas de um herdeiro mimado, ela conseguiu a um tempo se esquivar de questões temerárias e forçar o adversário a submergir seus questionamentos mais pertinentes em surtos de fúria, hipérboles e digressões.

O maior exemplo foi num tema que deveria ser um prato cheio para Trump, quando os mediadores questionaram Harris por que só agora a gestão de Biden decidiu agir contra a imigração ilegal. Harris disse algo sobre seu histórico como promotora, e rapidamente virou o holofote para Trump, acusando-o de sabotar um projeto de lei anti-imigração. Mas o golpe de mestre foi questionar o tamanho de seus comícios “entediantes”. Trump queimou sua réplica fulminando sobre como seus comícios eram os mais “incríveis na história da política”.

A fala mais efetiva de Trump – “se você tem todas essas grandes ideias, por que não as pôs em prática nos três anos e meio de governo?” – deveria ter sido dita no começo, corroborada com dados, e repetida insistentemente ao longo do debate. Mas foi dita só no fim, sem contundência. Na defensiva, era como se ele fosse o incumbente e ela, a desafiante. Repetidas vezes Harris falou em “virar a página”: ela tem “planos” (embora nunca bem esclarecidos), ela é a “novidade”, o “futuro” – ele é só um velho rancoroso.

Esse foi não só o primeiro debate entre ambos, mas o primeiro encontro – e possivelmente será o último. Os candidatos voltaram aos seus casulos, e as estratégias estão traçadas. Trump manterá sua militância inflamada. Harris se esquivará de confrontos em entrevistas e se oferecerá como uma candidata normal contra um candidato caótico, transformando a eleição num referendo sobre Trump.

Fazendo as contas do debate, Trump certamente não ganhou eleitores. Provavelmente também não perdeu. A questão é se Harris ganhou ou não o favor dos indecisos. Eis outro grande contraste com o debate anterior: aquele mudou tudo, este possivelmente mudará pouca coisa. Mas, numa eleição tão apertada, esse pouco pode ser o que Harris precisa para levar o grande prêmio.