Quinze meses após o Hamas massacrar o maior número de judeus em um único dia desde o Holocausto, a guerra em Gaza que custou – estima-se – mais de 46 mil vidas palestinas será finalmente interrompida a partir de amanhã. Mas é cedo para dizer se chegou ao fim.
O cessar-fogo de mais de quatro meses pactuado entre o governo de Israel e o Hamas, com a mediação dos EUA, Catar e Egito, prevê três fases. Na primeira, o Hamas libertará crianças, mulheres e idosos em troca de cerca de mil prisioneiros palestinos. Na segunda, o Hamas deverá libertar os reféns remanescentes enquanto Israel se retirará de Gaza. A terceira inclui a devolução dos cadáveres e o começo da reconstrução.
O fato de que esses termos, propostos pelo presidente americano, Joe Biden, vêm sendo negociados há oito meses ilustra as fragilidades e riscos em cada uma dessas fases. Tornou-se comum recriminar o premiê israelense, Benjamin Netanyahu, e suas bases de extrema direita pela demora. Mas essa é uma visão simplista. As condições precisaram ser construídas. Elas não estavam presentes enquanto Israel sofria ataques das múltiplas frentes que formam o autointitulado “Eixo de Resistência” comandado pelo Irã: o Hezbollah no Líbano, os houthis no Iêmen, milícias na Síria e o próprio Irã. Os danos impostos por Israel a essas frentes desde o 7 de Outubro criaram um cenário propício. A persistência do governo Biden conjugada às pressões do presidente eleito dos EUA, Donald Trump, completaram a confluência de fatores.
O Hamas temia que uma pausa temporária para a troca de reféns, sem um compromisso com um cessar-fogo permanente, seria apenas um hiato antes de Israel redobrar seus ataques. O governo israelense, por sua vez, queria a destruição total do Hamas. Nenhum dos dois atingiu seus objetivos e ambos tiveram de fazer concessões. A liberação de centenas de terroristas palestinos aumenta o risco de futuras agressões do Hamas. Israel abandonará a maior parte de Gaza, incluindo o corredor Netzarim, que cruza o enclave, recuando para as zonas-tampão criadas por suas forças. Esfacelado, o Hamas, por sua vez, renunciou à exigência da evacuação israelense no corredor Filadélfia – a fronteira de Gaza com o Egito – e de um fim permanente à guerra desde o início do cessar-fogo.
O Irã vive o seu momento de maior vulnerabilidade desde a Revolução de 1979. As capacidades da mais poderosa das milícias do “Eixo da Resistência”, o Hezbollah, foram muito degradadas, o que oferece novas possibilidades ao Líbano. A guerra foi decisiva para a queda do regime de Bashar al-Assad na Síria – embora os riscos de forças jihadistas ocuparem vácuos de poder sejam altos. O Hamas foi tremendamente debilitado – a começar pela perda de seus principais líderes –, mas ainda representa uma ameaça para palestinos e israelenses. Israel está mais seguro do que estava em 7 de outubro de 2023, mas está mais isolado internacionalmente e o antissemitismo recrudesceu no mundo.
De imediato, esse novo equilíbrio de forças impõe três desafios para a implementação do acordo. Primeiro, salvaguardas contra os extremistas israelenses e palestinos, que se opõem à coexistência dos dois povos. Depois, evitar a deterioração das condições humanitárias e de segurança em Gaza. Por fim, designar responsabilidades claras aos responsáveis pela sua reconstrução. Estabelecer uma coalizão regional com a participação dos EUA será decisivo para garantir essas condições e empreender a tarefa mais difícil: uma solução de longo prazo para Gaza.
Se o cenário para a reconstrução do enclave já é turvo e volátil, tanto mais para a criação de um Estado palestino. Nunca nesta geração essa perspectiva esteve tão distante. O caminho é longo, estreito e tortuoso, mas é o único possível e fora dele há apenas um abismo. A retomada da aproximação de Israel com os Estados sunitas, em especial a Arábia Saudita, será crucial para conter a reconstrução do Hamas, dissuadir o Irã, estabilizar a região e erguer um lar para o povo palestino, ou seja, para garantir que o cessar-fogo será o início de uma paz duradoura, e não um intervalo antes de uma guerra ainda mais devastadora.