Na São Paulo de antes da abertura do mercado para produtos importados, de antes da difusão maciça da grelha a carvão e do conceito de parrilla, não eram tantos os lugares confiáveis para comer carne. Pouco se falava em bife de chorizo ou de matéria-prima de raças europeias. Mas havia o Moraes, com seu filé mignon de gado zebuíno que nem grelhado era: a carne era frita no óleo e servida com muito alho. Pois é assim até hoje. Ir ao Moraes, o Rei do Filet, não é, entretanto, só um exercício de saudosismo. É a possibilidade de constatar a performance de um restaurante que conseguiu estabelecer um padrão de cozinha. A matriz, na Praça Júlio Mesquita, está completando 80 anos. O filezão que se tornou carro-chefe, contudo, já era preparado pelo fundador, Salvador Moraes, em 1914, e, salvo por algumas inevitáveis adaptações, vem mantendo o mesmo estilo. Com todo o despojamento de seu ambiente, com o misto de informalidade e educação à antiga de seu serviço, com as limitações de seu cardápio, o fato é que o Moraes implantou uma marca. Quantos podem se vangloriar disso? Poucos. Mais ainda, note-se que o restaurante foi capaz de criar um prato, próprio, assinado - e aí cabe uma analogia com outro decano, o Caverna Bugre, que com seu filé alpino ganhou o último Prêmio Paladar na categoria carnes. Há restaurantes mais pretensiosos que abrem, fecham, passam pela vida da cidade, mas não conseguem isso. À luz do que temos e sabemos hoje, pode parecer ultrapassado aquele pedaço enorme de carne chegando à mesa - e, ainda por cima, frito em óleo quentíssimo, coisa que seu cardiologista reprovaria. Mas continua sendo bom. Se você for um purista, deve exigi-lo à maneira tradicional, sem que a peça seja aberta no meio. E verá que a carne, dourada por fora, vermelha por dentro, concentra uma espécie de miscelânea de crenças e saberes: a devoção longinquamente afrancesada pelo filé; o gosto lusitano pelo alho frito; a pungência da cultura paulistana dos velhos bares. Contudo, você pode descrever ao garçom o ponto exato em que deseja a carne, e provavelmente ele será respeitado. Pode apreciar batatas fritas cortadas rusticamente, jamais em palitos perfeitos, e sempre muito gostosas. E, enquanto o principal não chega, divertir-se com os croquetes (também de filé) do couvert, que são uma delícia. Dominar tantas expertises assim, é ou não é gastronomia? Hoje, a excitação de ir a um restaurante recém-aberto vai além da curiosidade. Ela guarda o temor do desconhecido, mas sem que isso signifique experimentar a vertigem da novidade: é uma emoção que tem mais a ver com o grande risco de entrar numa roubada, de comer mal e pagar caro. Eu tenho a sorte de ter feito disto uma profissão, é minha obrigação ir a todos os lugares. Mas e o cliente comum, que reserva seu dinheirinho para aquele jantar, para aquela ocasião, como fica? E retomamos então o porto seguro de lugares como o Rei do Filet, o Caverna Bugre, o Ráscal e outros tantos reconhecidos por sua regularidade (não quero aqui comparar estilos e propostas). Talvez o Moraes seja mesmo apenas uma espécie de one trick poney, por que não? Contudo, reconheçamos: cada vez que o cavalo faz seu velho truque, a gente sabe que ele não vai errar. Moraes, Rei do filet Al. Santos, 1.105, Jd. Paulista, 3289-3347 11h/0h (4ª e 5ª até 1h; 6ª e sáb. até 2h) Cartões: todos Cardápio: não perca tempo e peça o filé clássico (R$ 60,47 para dois; R$ 42,32 para uma pessoa). Exija os croquetes do couvert (R$ 4,35). Avaliação: comida ao estilo antigo e confiável.