
Que tal participar – ou montar - uma confraria?
As confrarias de vinho se formam para que amigos compartilhem suas melhores garrafas, experimentem as novidades, comparem o rótulo A com o rótulo B, cotizem uma garrafa que é objeto de desejo, isso tudo em clima de camaradagem e descontração. É também aquele momento em que o vinho é protagonista. Em que ninguém vai ficar olhando torto para a sequência de rótulos, reclamando do balé de taças girando sem parar e ironizando o festival aromas que cada degustador encontra nos caldos.
Mas se o objetivo é só beber comentando o jogo de domingo, a última eleição ou se afinal o vinho faz bem ao coração como alegavam antigas pesquisas ou pode causar câncer como indicam as atuais, está valendo! Afinal, uma confraria também serve de justificativa para os apaixonados e eventuais bebedores de vinho desmarcar uma reunião importante de trabalho ou faltar ao aniversário do cunhado sem qualquer dor na consciência pois têm um compromisso mais importante: compartilhar uma ou mais garrafas de vinho com os amigos.
“Nunca vi uma boa amizade nascer numa leiteria”.
Vinícius de Moraes
Na França, o hábito de reunir amigos em torno das garrafas também é conhecido por confréries bachiques (de Baco), o que dá bem a dimensão do evento. No fim do dia, trata-se de um encontro em torno de uma bebida alcoólica, O diferencial que separa o porre pagão da degustação ecumênica está na escolha da bebida, da comida e da companhia: é o vinho e suas circunstâncias.
A popularização destes grupos de vinho no Brasil acompanhou o crescimento do mercado, o surgimento das lojas especializadas, a evolução do serviço dos fermentados nos restaurantes. Durante a pandemia de covid (parece que foi há um século, não?), adaptou de formato. Os encontros passaram a ser virtuais: as garrafas eram distribuídas em pequenas vasilhames, enviados aos confrades e os brindes e comentários se devam pelas telas e aplicativos de reuniões. Assim elas sobreviveram no período. E estão de volta.
Eu já participei de algumas confrarias, dos mais variados formatos: por tema (vinhos brasileiros); por afinidade profissional (jornalistas); por comida (confraria da baixa gastronomia). Esta última, a confraria da baixa gastronomia, talvez tenha sido a mais prazerosa e disruptiva que participei.
Toda confraria deve eleger um restaurante estrelado para realizar seus encontros? Não! A tese era harmonizar bons e variados rótulos com comida boa e barata. Era provar que a boa culinária não precisa estar necessariamente associada ao preço proibitivo praticado por alguns restaurantes. A baixa gastronomia é algo que não pesa no bolso, mas afaga o paladar, longe de ser um termo depreciativo, é uma exaltação à qualidade sem extorsão. E certamente merecia este tipo de encontro com o vinho.
Na sequência, a delicada retirada da rolha do tinto de Rioja, Tondônia 1985 na Confraria da Baixa Gastronomia
Uma vez por mês, portanto, nosso grupo levava taças e garrafas embaixo do braço e experimentávamos as harmonizações possíveis em estabelecimentos que em geral o vinho causava certa estranheza no entorno. Como nossos encontros se davam na hora do almoço, a sequência de garrafas e taças era acompanhada pelas mesas vizinhas com ares incrédulos. E culinárias regionais, típicas ou originais cresciam com os vinhos. E vice-versa. Saudade destes encontros ricos e descontraídos.
Um pouco de história
O nome confraria tem origem na mais antiga organização do gênero que se tem notícia na França: l'Antico Confrarie de Sant-Andiu de la Galiniei, fundada em 1140, em Béziers. Não tinha o formato atual, mas aí está sua gênese. Um dos mais antigos grupos ainda em atividade também é do país: a La Confrérie des Chevalliers du Tastevin, criada em novembro de 1934. A história é curiosa, o resultado, melhor ainda.
Em um momento de crise de liquidez dos caldos da Borgonha, dois amigos, Camille Rodier e Georges Faiveley, tiveram a brilhante ideia para aquecer o mercado: “Se ninguém quer nossos vinhos”, raciocinaram, “vamos convidar nossos amigos para vir prová-los conosco.” E criaram a confraria. Haja amigo. Atualmente são 12.000 membros em todo o mundo.
O experimento deu resultado. O Chevaliers du Tastevin é, desde 1945, proprietário do Châetau Clos de Vougeot. A partir desta experiência bem-sucedida, outras regiões criaram seus próprios grupos que se espalharam pela Europa com o objetivo de divulgar seus produtos entre seus consumidores. São também famosas as confrarias portuguesas do Vinho do Porto, formada em 1982 – que conta com 2.500 membros - e do Periquita, criada em 1993 para reunir os amantes do rótulo português e, claro, divulgar a marca. O encontro se dá em anos pares e entre seus 240 membros se misturam personalidades como políticos, artistas e personalidades do vinho como o ex-Presidente da República Jorge Sampaio, a cantora Fafá de Belém e a apresentadora da TV Globo Ana Maria Braga.
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A mãe de todas as nossas confrarias
As confrarias já não são uma novidade há muito tempo, mas teve seus desbravadores aqui no Brasil. A Confraria do Amarante, idealizada pelo especialista José Osvaldo Albano do Amarante e pelo crítico e jornalista Saul Galvão (falecido em 2009), está na ativa há mais de 30 anos. Desde fevereiro de 1983 alguns amantes de vinho se reúnem mensalmente para degustações às cegas – aquele tipo de prova em que as garrafas são embaladas e os rótulos só revelados no final -, sempre acompanhadas de jantares em bons restaurantes de São Paulo. O grupo já provou cerca de 3.000 garrafas, todas meticulosamente registradas e comentadas em uma planilha pelo autor de uma das melhores obras de referência sobre o tema: Os Segredos do Vinho - Para Iniciantes e Iniciados. De certa maneira, a Confraria do Amarante é a mãe de todas as confrarias brasileiras que surgiram de lá para cá.
Garrafa cheia eu não quero ver sobrar!
13 dicas para aproveitar melhor suas reuniões.
Então, que tal criar a sua confraria? Reúna os amigos, e monte um grupo. Dure o tempo que durar, é uma maneira divertida de ampliar sua biblioteca de rótulos e de observar o gosto do outro comparado ao seu.
1. É importante manter uma agenda. Procure estabelecer uma data fixa para os encontros. Todas as primeiras quartas-feiras do mês, algo assim, que facilite o agendamento e continuidade do grupo. Se for esperar o melhor dia para cada participante, é capaz de a confraria nunca passar do primeiro brinde e ao organizador sobrar o papel de bedel do vinho, sempre cobrando a presença dos confrades. E sem sucesso.
2. Organize as reuniões por e-mail, crie convites que lembre os participantes de data e local e crie grupos de WhatsApp onde os encontros podem ser registrados com imagens e textos, ou até mesmo em tempo real.
3. Escolha um tema para o encontro. Pode ser um país (vinhos argentinos), uma região mais específica (Borgonha), um tipo de vinho (brancos), uma uva (riesling) ou mesmo safra (de 2015). Em alguns casos vale estabelecer um valor máximo – ou mínimo – de valor do rótulo. Assim se evitam grandes discrepâncias e o efeito primo rico e o primo pobre.
4. A experiência pode ficar mais rica também se alguém se dispuser a pesquisar sobre os vinhos que vão ser degustados, as principais características, um pouco de sua história e algumas curiosidades sobre as uvas, as principais vinícolas, estes detalhes que fazem a alegria dos enófilos de carteirinha, mas que também atiçam a curiosidade de quem está chegando neste mundo. Só não pode virar uma aula. Aí fica chato.
5. Anote o nome, safra e produtor do vinho, registre os rótulos com fotos e com comentários e impressões da garrafa. Assim você vai criando seu acervo pessoal das provas e pode repetir a garrafa que mais lhe agradar em outra oportunidade.
6. Quando o encontro for na casa de um dos confrades, verifique se é preciso levar seu jogo de taças. Ter uma mala, sacola ou mesmo caixa para levar os copos ajuda muito na logística.
7. Evite usar perfumes fortes no dia da confraria, melhor até nem usá-los. Não é de bom tom misturar aromas. Seus colegas não vão gostar de meter o nariz na taça e encontrar traços de Patchouli, por exemplo…
8. Se a reunião for marcada em um restaurante, é importante combinar com antecedência com o estabelecimento o tipo de serviço necessário. E perguntar, no ato da reserva, o valor do serviço de rolha, se tem taças de vinho adequadas, etc. Se não tiver, não se acanhe em levar suas taças, saca-rolhas, balde de gelo, cuspideira, o que for preciso para aproveitar ao máximo a oportunidade.
9. Nas confrarias realizadas em restaurantes ou wine bar, reserve uma taça de um vinho ao sommelier ou proprietário e ouça atentamente a avaliação do profissional. É atencioso e também pode ser didático. Afinal, são profissionais do vinho.
10. Os reuniões podem assumir alguns formatos:
- Às cegas: quando os rótulos são revelados apenas no final da prova, para isso é necessário levar as garrafas embrulhadas em papel alumínio;
- Aberto: onde todas as garrafas são reveladas ao serem servidas ou mesmo combinadas previamente pelo grupo.
11. No geral, os participantes elegem os melhores vinhos da vez e formam um ranking da rodada. É aquele momento em que o confrade que trouxe a garrafa mais votada se enche de orgulho e pompa e o lanterninha encontra alguma justificativa para o rótulo que trouxe. Há vários critérios para esta decisão. As escolhas das melhores garrafas do encontro podem ser feitas por votação simples (quem gostou mais da garrafa número 1, levanta a mão!), pelo critério de pontuação, como fazemos aqui neste Guia do Vinhos, ou mesmo por harmonização com a comida, quando for o caso.
12. A dica mais importante, no entanto, é tornar este hábito um prazer, uma diversão daquele tipo que você espera ansiosamente pelo próximo encontro. Se virar obrigação – ou gerar desentendimento –, cai fora. E busque uma nova turma.
13. A segunda dica mais importante: seja responsável e não dirija. Vá de táxi, de carro de aplicativo, de transporte público. É civilizado, legal, em todos os sentidos, e você pode curtir os vinhos numa boa.