Safras dos vinhos: um manual de como usar

Safras dos vinhos: um manual de como usar

Publicado por: Ricardo Cesar Publicado: 14/04/2025 10:19 Visitas: 675 Comentários: 0

Desconfiar de verdades absolutas é uma recomendação válida para muitas coisas - e isso certamente inclui vinhos. Quase todas as generalizações que são enunciadas cheias de convicção - "quanto mais velho, melhor", "vinho brasileiro não presta", "vinho francês é bom" - são corretas em alguns casos, porém equivocadas em tantos outros.

A questão das safras é provavelmente o principal exemplo disso. Sempre escutamos a recomendação de procurar os melhores anos e somos bombardeados por materiais de marketing de produtores e importadoras enaltecendo a última safra “histórica”, “melhor da década”, “melhor em uma geração” etc. Claro que a primeira regra é descontar as hipérboles. Mas, além disso, é preciso saber interpretar corretamente as características de cada ano para não errar na pedida. Sim, o uso adequado das informações de uma safra é um pouco mais complicado do que procurar as boas e evitar as ruins.

Um exemplo ajuda a entender a questão. Imagine que você está no “date” da sua vida com aquela pessoa incrível. E que ela adora vinhos! Um restaurante especial, numa noite especialíssima… Você conclui que se alguma vez na vida vale a pena beber meia conta bancária num par de horas, eis que é chegada a ocasião. Com os conhecimentos recentemente adquiridos num curso-relâmpago de vinhos, você escolhe uma super garrafa de Bordeaux da festejada safra de 2020

Seu raciocínio foi impecável: havia degustado aquele mesmo vinho durante o curso, porém um exemplar da safra de 2012, considerada inferior. Se aquela garrafa anterior já era boa, esta seria de arrebentar, certo? Você mal consegue disfarçar a cara de decepção ao dar o primeiro gole. O vinho até era gostoso, porém muito mais discreto, fechado, sem aqueles aromas intoxicantes dos quais você se lembrava. Pior: sua adstringência estava acentuada, dando uma sensação de "boca amarrada". O conjunto era um pouco pesado, deselegante. Nem sombra do imenso prazer sensorial que tinha sido imaginado. Apenas um amargo retrogosto de cartão de crédito estourado.

Alguma coisa devia estar errada. Seria uma garrafa defeituosa?

A resposta é não. O vinho de 2012 talvez não seja melhor, mas certamente estava melhor para ser consumido naquele momento do que o 2020. As boas safras geram vinhos concentrados e densos, com mais fruta e muitas vezes mais taninos também - em suma, caldos de maior "estrutura", como se diz. Isso vale sobretudo para os rótulos de topo de linha. Podem ser os melhores, mas demandam tempo na adega para amaciar e mostrar toda sua qualidade. Em contrapartida, os produtos de safras fracas são menos concentrados, mais leves e logo ficam prontos para o consumo. Só que não evoluem muito e não duram tanto tempo na adega.

Um grande Bordeaux de uma safra fraca pode estar ótimo em poucos anos. O mesmo rótulo de uma boa safra requer dez anos de guarda para mostrar suas qualidades e talvez esteja ainda melhor com 15 ou 20 anos (embora os enólogos estejam fazendo vinhos que ficam prontos cada vez mais rápido para atender aos padrões de consumo atual). Como num restaurante pede-se o vinho para beber imediatamente, a equação a ser feita é diferente de quem compra uma garrafa para guardar na adega e abrir numa ocasião especial daqui a mais de uma década.

Há um outro ponto importante a ser considerado. Entre os produtores mais sérios, é praxe que nos anos fracos os rótulos de elite tenham produção menor, já que é feita uma seleção super estrita das melhores uvas. Em alguns casos os vinhos de topo de gama simplesmente não são produzidos nas safras muito ruins. Com isso, as melhores uvas, que normalmente iriam para esses produtos premium, são empregadas nas linhas intermediárias, que dessa forma não perdem tanta qualidade e podem até ganhar.

Mais algumas informações para considerar nesse quebra-cabeças: o estilo do produtor e o seu gosto pessoal. Por vezes prefiro as garrafas de safras mais fracas de alguns produtores de "mão pesada" que costumam fazer vinhos superconcentrados. Assim a natureza ameniza um pouco alguns exageros.

Na verdade, o próprio conceito do que é uma safra boa ou ruim é, até certo ponto, variável, acompanhando também as preferências estilísticas de críticos e produtores. Houve uma época em que, muito por influência de Robert Parker, os anos bem quentes eram considerados bons e os anos mais frios e úmidos, ruins. Essa é uma interpretação até certo ponto clássica de como ler o potencial de uma safra. Mas veio o aquecimento global, vieram as tecnologias de manejo de vinhedos e de vinificação, sobreveio o cansaço dos vinhos muito pesados, alcoólicos e extraídos, instalou-se a busca por frescor e elegância e de repente… um ano de temperatura amena e com um pouco mais de umidade passa a ser exatamente o conceito de uma safra excelente. As coisas mudam.

É por essas e outras que qualquer bebedor com certa experiência já se deparou com uma garrafa maravilhosa pela frente e quando foi conferir o rótulo, bem, era justamente daquela safra que devia ser evitada a todo custo.

Moral da história: a tabela de safras é, sim, uma ferramenta útil para o enófilo, mas sozinha não basta. O mundo dos vinhos é bem mais complexo do que um "ano bom" ou "ano ruim". Ainda bem.

Tags: Guia dos Vinhos, vinho de guarda, safras antigas, safras

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