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Demanda por alimento e sustentabilidade puxam setor de carne cultivada

Tecnologia cara, mas disruptiva, deve alcançar preços competitivos com maior escala; carne de laboratório minimiza impactos de desmatamento e doenças infecciosas

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Foto do author Juliana Pio

A carne cultivada, também chamada de artificial, sintética ou ‘limpa’, surge no mercado como mais uma fonte de proteína para o consumidor, assim como as alternativas vegetais (plant based), frente a uma demanda por comida cada vez maior no mundo.

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Até 2050, será necessário aumentar a produção de alimentos em 50%, segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO). Isso porque, nos próximos anos, a população aumentará em cerca de 30%, para quase 10 bilhões de pessoas, sendo que a maior parte viverá em áreas urbanas com níveis de renda maiores do que os atuais. 

“Não há possibilidade de produzir proteína da forma convencional para alimentar a população crescente nas próximas décadas. As fronteiras agrícolas estão se esgotando. Já estamos desmatando onde não deveríamos”, destaca Luismar Porto, engenheiro químico e professor da Universidade Federal de Santa Catarina.

À necessidade de preservação do ambiente soma-se ainda uma maior preocupação com as saúdes humana e animal e com as doenças infecciosas, como as gripes suína e aviária.

“Tudo isso contribui para que a indústria comece a buscar novas soluções para produzir comida. A ideia não é fazer carne para um vegetariano ou vegano e, sim, desenvolver uma tecnologia que vai permitir alimentar a população do futuro de maneira sustentável”, explica Gustavo Guadagnini, diretor executivo do The Good Food Institute (GFI) no Brasil. 

As fronteiras agrícolas estão se esgotando, segundo Luismar Porto, engenheiro químico e professor da Universidade Federal de Santa Catarina. Foto: Dida Sampaio/Estadão

Embora a tecnologia da carne cultivada seja recente, e grande parte das empresas ainda estejam em nível laboratorial ou começando a fazer demonstrações, já há projeções que mostram seus benefícios, o que explica o interesse da indústria e da academia.

“Leva-se em média dois anos para se criar um boi para o abate. Já a carne cultivada é possível obtê-la em cerca de três semanas, dependendo da tecnologia. Em tese, uma única célula-tronco pode ser utilizada por dez anos em uma produção de larga escala”, destaca o professor Luismar Porto.

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Além de não requerer o uso de antibióticos e abate animal, o processo prevê menos uso da terra, de 63% a 95%, em comparação com a carne convencional, não só para a criação do gado, como também para a produção de ração. As informações constam de estudo encomendado pelo GFI e pela organização Gaia divulgado em fevereiro, com base em dados fornecidos por 15 empresas da cadeia de abastecimento de carne cultivada.

Bife cultivado, produzido a partir de células bovinas, da startup israelense Aleph Farms. Foto: Aleph Farms

Ainda de acordo com a pesquisa, a nova forma de produzir a proteína poderia reduzir de 51% a 78% o consumo de água azul, encontrada em reservatórios superficiais e subterrâneos. Os impactos do aquecimento global também diminuiriam em 17%, 52% e 92% em comparação à produção tradicional de frango, porco e boi, respectivamente. 

Segundo Luismar, o desafio hoje, além da regulamentação do setor, é reduzir os custos do cultivo de células. A tendência é que o preço se torne mais competitivo a longo prazo com o aperfeiçoamento da produção e ganho de escala. “Por enquanto, é uma tecnologia cara, mas disruptiva. Há infinitas possibilidades do que pode ser feito, até mesmo uma carne nutricionalmente melhor que a convencional, com menos gordura e colesterol.”

Brasil carece de investimentos no setor

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Além das carnes bovinas, há estudos para a reprodução de células dos mais variados tipos de animais, como peixe, produzido pela Finless Food; camarão, pela Shiok Meats; e frango, pela Eat Just.

“Existem, inclusive, iniciativas de pesquisa com carnes exóticas, para reproduzir pratos típicos e suprir hábitos e tradições culturais. Poríamos fazer, por exemplo, a mixira de peixe-boi que é um prato proibido, porque a caça é ilegal, mas que continua sendo consumido na região amazônica”, destaca Gustavo, do GFI, que mantém parceria com o governo do Amazonas para desenvolver estudos na área. 

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Tecnologia semelhante pode ser usada também para a reprodução de leite, gelatina, ovo e outros componentes. Para se ter uma ideia, empresas internacionais captaram robustos investimentos em 2020 para a fabricação do leite materno humano.

Hoje, as iniciativas em células cultivadas estão mais concentradas nos Estados Unidos, Europa, Israel, alguns países da Ásia, como Singapura e China, além da Austrália. O maior gap está na África e na América Latina, com poucas iniciativas em andamento.

Especialistas ouvidos pelo Estadão acreditam que o Brasil tem potencial para fazer frente à concorrência, contudo, necessita ampliar o financiamento científico para acelerar as inovações e as pesquisas no campo.

“Basta observar o setor de carnes vegetais. O primeiro hambúrguer análogo foi lançado no Brasil em 2019 e nos Estados Unidos, em 2008. Saímos mais de 10 anos atrasados e, hoje, já exportamos para mais de 25 países. Vejo muito potencial para que aconteça o mesmo com as carnes cultivadas”, acredita o diretor do GFI.

Não por acaso, companhias brasileiras hoje têm investido em startups no exterior. Esse é o caso do Enfini Ventures, fundo de capital de risco voltado ao mercado de proteínas alternativas, que tem no portfólio empreendimentos de carne cultivada, entre eles, as americanas Upside Foods, BlueNalu e Mission Barns. Recentemente, participaram também da rodada de negócios da startup israelense Aleph Farms, assim como a BRF.

Bruno Franco, economista e sócio do Enfini Ventures, fundo que investe em startups de carnes cultivadas. Foto: Felipe Mariano

De acordo com o economista e sócio da Enfini Ventures, Bruno Franco, no Brasil ainda há poucos investidores no setor. “Falta conhecimento, no mundo, inclusive, por se tratar de uma tecnologia nova, além de pesquisa para o desenvolvimento de empresas no País. Embora já existam protótipos muito bem feitos e avanços nas regulamentações, até que todos comecem a ver e provar vai existir um ceticismo grande.”

Ainda segundo o economista, o setor de carne cultivada deve enfrentar o mesmo movimento do mercado de energia, que hoje é composto por várias fontes renováveis. “Teremos um combinado de soluções proteicas para conseguir suprir a demanda alimentar no futuro”, finaliza.

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