I - O FATO
O Supremo Tribunal Federal esclareceu que a Constituição diz que a Saúde é um direito de todos e uma responsabilidade compartilhada entre União, estados e municípios. Cada um deles tem um papel a cumprir. A corte definiu que as decisões cotidianas, como o funcionamento do comércio, se dão em nível local. Mas isso não exime a União e o presidente de suas obrigações, obviamente.
Na sua conta no Twitter, o presidente escreveu: "Lembro à Nação que, por decisão do STF, as ações de combate à pandemia (fechamento do comércio e quarentena, p.ex.) ficaram sob total responsabilidade dos Governadores e dos Prefeitos." Logo depois, saiu uma mensagem no Twitter, espalhada por robôs: "só para lembrar: STF afastou Bolsonaro do controle da Covid, dando poder a governadores e prefeitos."
Nem o Supremo Tribunal Federal disse isso nem a Constituição Federal assim o diz.
Segundo o Estadão, "o "negacionismo científico" do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) quanto à gravidade da pandemia do novo coronavírus e a participação do chefe do Executivo em ato que pedia a intervenção militar, o retorno do AI-5 e o fechamento do Congresso Nacional são incompatíveis com o decoro e a dignidade do cargo, configurando crimes de responsabilidade a motivar processo de impeachment, indica parecer elaborado pelo Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB). No documento, a entidade centenária indica ainda que, se confirmada, a suposta interferência política do presidente na Polícia Federal será mais um "fato gravíssimo" cometido por Bolsonaro, também ensejador de afastamento".
II - O ARTIGO 23 DA CONSTITUIÇÃO
Observo o artigo 23 da Constituição:
Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:
.......
II - cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;
Parágrafo único. Leis complementares fixarão normas para a cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional.
Nessa linha de pensamento trago a elucidativa lição de Dalmo Dallari (Normas gerais sobre saúde: cabimento e limitações:
"No caso da Constituição brasileira de 1988 pode-se dizer que, em linhas gerais, mesmo sem atribuir superioridade à União sobre as unidades federadas, foram estabelecidos critérios que dão ao Legislativo federal a competência para legislar quando se considera conveniente uma disciplina legislativa uniforme para toda a Federação, o que implica certa centralização. Entretanto, não foi esquecida a hipótese de competência concorrente, ou seja, competência que não é exclusiva da União, além de se ter reconhecido que em determinados casos a competência pode ser exclusiva dos Estados ou dos Municípios. Para conhecimento do assunto, convém começar examinando a competência legislativa da União.
No artigo 22 são enumeradas as matérias sobre as quais a União tem competência para legislar com exclusividade, ficando, portanto, eliminada a hipótese de legislação estadual ou municipal sobre tais matérias. Abre-se apenas uma possibilidade de exceção, através do parágrafo único acrescentado a esse artigo, dispondo que através de lei complementar a União poderá autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas das matérias relacionadas nesse artigo. O artigo 24 faz a enumeração de matérias sobre as quais a União, os Estados e o Distrito Federal poderão legislar concorrentemente, tendo-se acrescentado alguns parágrafos a esse artigo fixando regras visando prevenir o risco de conflitos que poderiam decorrer da hipótese de haver lei federal e outra dispondo sobre o mesmo assunto. É muito importante o conhecimento dessas regras, sobretudo pelo fato de que a Constituição contém, no artigo 23, uma longa enumeração de matérias que são de competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Como é óbvio, aquele que é competente para cuidar de certa matéria será, forçosamente, obrigado a legislar sobre ela, pois toda participação do poder público deve ocorrer nos quadros da lei.
De acordo com o disposto no § 1º, quando se tratar de matéria em que a competência legislativa é concorrente a União somente poderá estabelecer normas gerais, deixando aos demais a legislação sobre pontos específicos. Evidentemente, nesse caso a legislação que tratar de aspectos especiais não poderá contrariar as normas gerais estabelecidas pela União. O § 2o. confere aos Estados uma competência suplementar para legislar sobre as matérias que tiverem sido objeto de norma geral federal e o § 3o. dá aos Estados competência legislativa plena para legislar sobre as matérias que não tiverem sido objeto de norma geral federal. Neste caso, entretanto, dispõe o § 4º que sobrevindo uma norma geral federal a lei estadual já existente que lhe for contrária terá suspensa sua eficácia, passando-se a aplicar a regra do § 1º."
III - AS NORMAS GERAIS EDITADAS PELA UNIÃO FEDERAL
Como ficariam as normas gerais editadas pela União Federal?
Raul Machado Horta, um dos teóricos brasileiros que mais têm dedicado atenção ao tema do federalismo, considera que o constituinte de 1988 "enriqueceu a autonomia formal, dispondo que a competência da União consistirá no estabelecimento de normas gerais, isto é, normas não exaustivas, e a competência dos Estados se exercerá no domínio da legislação suplementar". Complementando essa observação, oferece em seguida uma noção muito precisa: "A lei de normas gerais deve ser uma lei quadro, uma moldura legislativa. A lei estadual suplementar introduzirá a lei de normas gerais no ordenamento do Estado, mediante o preenchimento dos claros deixados pela lei de normas gerais, de forma a afeiçoá-la às peculiaridades locais" (Estudos de Direito Constitucional, Del Rey, Belo Horizonte, 1995, págs. 419/420).
Para José Afonso da Silva, que integrou a Comissão Afonso Arinos, encarregada de elaborar o anteprojeto de Constituição que serviu de ponto de partida para os constituintes de 1988, pode-se falar com propriedade numa legislação principiológica, na qual se enquadrariam a fixação de normas gerais e a legislação sobre diretrizes e bases (Curso de Direito Constitucional Positivo, São Paulo, Ed.Revista dos Tribunais, 1989, pág.434). Para ele, portanto, legislar sobre normas gerais significa estabelecer princípios sobre determinada matéria, deixando para a legislação suplementar o estabelecimento de regras relativas a situações particulares.
Raul Machado Horta, um dos teóricos brasileiros que mais têm dedicado atenção ao tema do federalismo, considera que o constituinte de 1988 "enriqueceu a autonomia formal, dispondo que a competência da União consistirá no estabelecimento de normas gerais, isto é, normas não exaustivas, e a competência dos Estados se exercerá no domínio da legislação suplementar". Complementando essa observação, oferece em seguida uma noção muito precisa: "A lei de normas gerais deve ser uma lei quadro, uma moldura legislativa. A lei estadual suplementar introduzirá a lei de normas gerais no ordenamento do Estado, mediante o preenchimento dos claros deixados pela lei de normas gerais, de forma a afeiçoá-la às peculiaridades locais" (Estudos de Direito Constitucional, Del Rey, Belo Horizonte, 1995, págs. 419/420).
O ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que estados, Distrito Federal e municípios também podem criar regras de isolamento, quarentena e restrição de transporte e trânsito em rodovias, portos e aeroportos.
IV - CRIME DE RESPONSABILIDADE
A omissão do presidente da República, em matéria de saúde pública, poderá lhe levar a cometimento de crime de responsabilidade.
Art. 9º São crimes de responsabilidade contra a probidade na administração:
........
4 - expedir ordens ou fazer requisição de forma contrária às disposições expressas da Constituição;
.........
7 - proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decôro do cargo.
O Presidente da República teria cometido "crimes contra a probidade na administração pública, como a expedição de ordens contrárias à Constituição Federal, a teor da Lei nº 1.079/50.
Constitui crime de responsabilidade contra a probidade da administração "proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo. De forma semelhante dispunha o Decreto nº 30, de 1892, ao preceituar, no artigo 48, que formava seu capitulo VI, ser crime de responsabilidade contra a probidade da administração "comprometer a honra e a dignidade do cargo por incontinência política e escandalosa, ......, ou portando-se com inaptidão notória ou desídia habitual no desempenho de suas funções".
Como disse ainda Paulo Brossard (O impeachment, 1992, pág. 56), "não é preciso grande esforço exegético para verificar que, na amplitude da norma legal - "proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo" - cujos confins são entregues à discrição da maioria absoluta da Câmara e de dois terços do Senado, cabem todas as faltas possíveis, ainda que não tenham, nem remotamente, feição criminal.
Tal se dá em decorrência do princípio republicano, na possibilidade de responsabilizá-lo, penal e politicamente, pelos atos ilícitos que venha a praticar no exercício das funções.
Paulo Brossard (obra citada, pág. 132) fala em pena política que o Senado impõe, ao acolher acusação da Câmara consistente na destituição do presidente da República. Para o ministro Brossard, dado que impropriamente chamados crimes de responsabilidade, enquanto infrações políticas, não são crimes, mas ilícitos de natureza política, como política é a pena a eles cominada.
*Rogério Tadeu Romano, procurador regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado