A filósofa Djamila Ribeiro deixou o Twitter. A rede social, conta, se tornou um ambiente tóxico para a comunidade negra e, principalmente, para as mulheres negras, que sofrem constantes ataques tanto da ala 'conservadora' do site quando do grupo mais 'progressista'. "A gente está num momento em que as pessoas não sabem discordar sem atacar. Parece que, quem discorda, tem que ser aniquilado", disse Djamila em entrevista concedida ao Estadão na última sexta, 14.
Segundo ela, o Twitter não apenas é ineficaz no combate aos ataques dirigidos à comunidade negra como se beneficia indiretamente deles, obtendo lucros. Por essa razão, Djamila assinou uma representação ao Ministério Público Federal. A peça foi elaborada junto aos movimentos Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombola e União de Negras e Negros Pela Igualdade na Cidade de São Paulo.
Os advogados Djefferson Amadeus de Souza Ferreira, Adilson José Moreira e Paulo Roberto Iotti Vecchiatti assinam a representação, cujo objetivo, conta Djamila, é obrigar o Twitter a criar um fundo direcionado ao combate à discriminação. A argumentação é baseada, também, em tese de doutorado do sociólogo Luiz Valério Trindade, sobre os ataques às mulheres negras em decorrência de seu protagonismo nas redes sociais.

"A internet não pode ser esse espaço em que as pessoas falam o que querem. Se elas falam o que querem, elas precisam estar preparadas para serem responsabilizadas pelo o que elas falam, sobretudo as redes sociais. Essas empresas bilionárias precisam parar de lucrar com esse tipo de discurso", afirma Djamila.
Em nota, o Twitter informa que tem regras que determinam quais conteúdos e comportamentos que são permitidos na plataforma. "Violações a essas regras, que seguem em constante evolução para fazer com que as pessoas se sintam mais seguras ao usar a plataforma, estão sujeitas às medidas cabíveis", afirma a rede social.
Leia abaixo os principais pontos da entrevista:
ESTADÃO: O que motivou a representação contra o Twitter ao Ministério Público Federal?
DJAMILA RIBEIRO: Já faz algum tempo em que eu venho observando muitos ataques no Twitter, não apenas contra mim, especificamente, mas também a várias outras companheiras. Muitas desistiram do ativismo, outras não tem perfil mais lá por conta disso. Há, também, a tese de doutorado do Luiz Valério que mostra que o discurso de ódio é destinado a mulheres negras. Então, há tempos que o Twitter me incomoda como uma rede social em que esses ataques acontecem e nada é feito.
Nos últimos ataques que sofri no mês passado eu bloqueei (contas de usuários), mas minha filha recebeu mensagens no celular dela. Eu tive que fazer um B.O. Então acho que agora passou de todos os limites do aceitável.
Você diz que a situação 'passou de todos os limites'. Você percebeu uma escalada nos ataques?
Sim, já havia percebendo, já retirei meu perfil no Twitter por conta disso. Por mais que a gente tente conversar com as pessoas que fazem isso, a gente percebeu que não era uma questão de ir atrás do indivíduo. A gente precisava responsabilizar a plataforma que permite que esse tipo de coisa aconteça e que lucra com esse tipo de coisa porque se o assunto se torna 'trending topics' (temas mais comentados no Twitter), mais anunciantes anunciam.
No mês passado, fui convidada a fazer parte de uma campanha chamada Stop Hate for Profit (Pare de Lucrar com Ódio), de três organizações norte-americanas. Nos Estados Unidos eles estão pressionando o Facebook, que é a rede mais problemática lá, e também pressionam para que ninguém anuncie no Facebook enquanto não melhorarem suas políticas.
Por isso, achamos que era importante representar o Twitter aqui no Brasil por fazer essa exploração econômica do racismo e da misoginia, e de não melhorar suas políticas. Não é uma questão do indivíduo, é uma questão da plataforma que permite que esse tipo de coisa aconteça, lucre com isso, e não tome medidas.
Essa representação poderia ser estendida a outras redes sociais? Por que focar especificamente no Twitter?
Eu acho que poderia ser aplicada a outras redes sociais, sim, mas como eu falei, na tese de doutorado as mulheres negras tem 84% mais chances de receber comentários desrespeitosos. Isso foi baseado nas pesquisas que nós lemos, mas também no que sentimos.
A maior parte dos ataques, de fato, eles acontecem no Twitter. As reclamações das mulheres negras é em relação ao Twitter. Não que em outras redes isso não aconteça, mas, no Brasil, o Twitter acaba sendo essa rede mais problemática para o grupo de mulheres negras.
Por que e como essas redes sociais, como o Twitter, se tornaram esses ambientes tão tóxicos para a comunidade negra e, principalmente, para as mulheres negras?
Penso que tem a questão dessas pessoas já faziam esse tipo de coisa (ataques racistas), mas as redes sociais amplificaram. Nos últimos anos, as mulheres negras foram o grupo que mais utilizaram as redes sociais. Uma pesquisa da revista Gênero, Número e Grau mostra que as mulheres negras conseguiram realizar ações coletivas virtuais, blogs, começaram a ter uma forma de discutir essas questões.
Há com isso uma reação à esse trabalho, esse ativismo, que as mulheres fazem nas redes, que é o trabalho de denúncia ou trabalho de visibilizar autoras, cineastas negras que divulgam seus filmes lá. No meu caso, eu leio e divulgo autores e autoras negras.
Imagino que os ataques, principalmente racistas, podem ser mais intensos nas redes sociais, seja em questão de volume de publicações como em questão de anonimato dos autores. Você percebe isso?
Algumas contas são fake, de fato. O anonimato ajuda nesses ataques. Muitas ações são coordenadas. A gente percebe que são coordenadas, em grupos, porque as pessoas vem em comportamento de manada. Mas nem todas as pessoas são fake. Existem muitas pessoas que colocam a cara e tentam muitas vezes se disfarçar que aquilo é uma crítica política, mas sempre personalizando, debochando. Uma tentativa de deslegitimar. Pessoas, claro, conservadoras, muitas, mas infelizmente há também pessoas do campo progressista que cometem esse tipo de ataque porque são contrários às pautas que as mulheres negras trazem e às discussões que refutam um debate hegemônico no lado progressista, no sentido de trazer autoras que vão criticar determinados autores.
Enfim, ao invés de fazer o debate público, o debate honesto, escolhem muitas vezes o ataque pessoal, o deboche. Fazem memes, ridicularizam, ao invés de fazer uma crítica. A discordância fortalece a democracia, mas a gente está num momento em que as pessoas não sabem discordar sem atacar. Parece que, quem discorda, tem que ser aniquilado.
E como nós trabalhamos com essas pautas raciais, de gênero, de classe, como nós muitas vezes somos invisibilizadas desse debate, a gente começa a ter uma certa participação no debate público e isso gera incômodo, infelizmente, em setores progressistas também. A gente acaba ficando muito à mercê de ataques de vários lados.
Qual o caminho que as redes sociais deveriam adotar para não ser esse espaço tão tóxico à comunidade e as mulheres negras?
O que a gente está propondo na representação é que, caso sejamos vitoriosos, o Twitter destine dinheiro para um fundo de combate à discriminação e também contrate um compliance externo. O que seria esse compliance? Uma equipe capacitada nessa questão racial para fazer um conjunto de práticas de regras e condutas para a rede social. É o que a gente está propondo na representação: que eles contratem esse compliance para que possam fazer esse letramento racial e que estabeleçam regras e práticas de conduta que sejam aceitáveis.
Em debates envolvendo conteúdos publicados em redes sociais, há sempre uma discussão sobre liberdade de expressão. Usuários alegam estar protegidos por essa garantia constitucional e as plataformas a usam para não serem responsabilizadas até serem notificadas judicialmente para retirada de determinado conteúdo. Como você encara isso?
A nossa discordância é que liberdade de expressão não é discurso de ódio. Liberdade de expressão não é direito absoluto. Imagine o grupo de mulheres negras, em que a grande maioria delas é pobre e não tem acesso à Justiça. E se todas as mulheres que forem ofendidas tiverem que contratar um advogado, mover uma ação, quando a maioria sequer tem condições para isso?
Então, fica muito confortável para o Twitter, que é uma empresa bilionária, se isentar dessa responsabilidade. Ora, acho que nós sabemos quando um conteúdo fere os direitos de alguém, e a partir do momento que fere direito de alguém, essa pessoa cometeu um crime. Já não cabe nesse sentido da liberdade de expressão.
Justamente por isso que precisa ter um compliance. As pessoas que trabalham no Twitter precisam ter um treinamento, um letramento racial sobre essas questões. Não fere o direito à liberdade de expressão - a pessoa não foi censurada, não existe censura prévia. O que deve existir são pessoas que saibam avaliar se aquilo que a pessoa publicou fere ou ofende a dignidade de certos grupos para que aquilo possa ser retirado posteriormente como, por exemplo, mentiras e fake news.
Muitas vezes as mulheres são atacadas sem direito de defesa, sem contraditório. Então, é um argumento falacioso dizer que fere a liberdade de expressão porque essas pessoas estão postando, elas não foram censuradas. O Twitter precisa ter uma equipe que saiba avaliar quando um conteúdo fere a dignidade de outros grupos.
E quando vai para o Trending Topics do Twitter, por exemplo, que são os assuntos mais comentados, anunciantes continuam anunciando, colocando mais anúncios, sem que o Twitter avalie o conteúdo, mesmo quando ele é denunciado.
Exigir que o grupo de mulheres negras, que é o grupo mais invisibilizado do Brasil, tenha que individualmente acessar à Justiça, quando a gente sabe como a Justiça é em relação às mulheres negras, é uma visão que beneficia essas empresas bilionárias que continuam lucrando com tudo isso sem tomar medidas para coibir esse tipo de crime na internet.
Além do Judiciário, seria um caso de levar isso também ao Legislativo? Há um espaço hoje para se discutir esse tipo de proposta no Congresso?
Eu penso que é importante levar isso ao Legislativo. A gente não descarta essa opção, mas como hoje vivemos um momento político muito difícil, muito duro, achamos necessário mover essa representação.
Julgamos importante tomar essa medida uma vez que existem aí muitas mulheres negras adoecendo psiquicamente, desistindo do ativismo, tendo suas vidas prejudicadas, sendo que nada é feito. Claro que não descartamos levar para o Legislativo, mas nesse momento achamos que seria mais importante levar ao Ministério Público Federal.
Se a representação não avançar junto ao Ministério Público, o que pretende fazer?
Acho que independente do resultado, o debate está posto. O ganho politicamente é que o debate está posto. A gente precisa falar publicamente sobre como manter ambientes menos tóxicos. Caso a gente não consiga por essa via, com certeza tentaremos outras, como o próprio Legislativo, com deputados da base aliada. A gente não vai desistir desse debate. É algo que a sociedade precisa enfrentar.
A internet não pode ser esse espaço em que as pessoas falam o que querem. Se elas falam o que querem, elas precisam estar preparadas para serem responsabilizadas pelo o que elas falam, sobretudo as redes sociais. Essas empresas bilionárias precisam parar de lucrar com esse tipo de discurso.
Independente do resultado, é importante dizer que estou fazendo parte dessa campanha internacional. Vou seguir denunciando internacionalmente isso que tem acontecido no Brasil.
COM A PALAVRA, O TWITTERO Twitter tem regras que determinam os conteúdos e comportamentos permitidos na plataforma. Violações a essas regras, que seguem em constante evolução para fazer com que as pessoas se sintam mais seguras ao usar a plataforma, estão sujeitas às medidas cabíveis.