Nos primeiros dias de curso de Direito, qualquer estudante é apresentado a uma intrigante pergunta e a uma lista que mais parece uma ladainha. Conclui-se, enfim, a faculdade ainda com o questionamento: o que é "o Direito"? Ulpiano dizia que se tratava da "arte do bom e do justo", Ihering que "direito é a soma das condições de existência social, no seu amplo sentido, assegurada pelo Estado através da coação", já Grocio que "o direito é o conjunto de normas ditadas pela razão e sugeridas pelo appetitus societatis". Assim, os grandes pensadores, de uma maneira ou de outra, entendem que fundamentalmente há é um grande pacto normativo que se impõe sobre a sociedade, de modo a minimamente permitir a coexistência de interesses não raro divergentes. E quais as fontes formais do Direito? A isso o aluno iniciante reage quase que institivamente: lei, costume, jurisprudência, princípios gerais, doutrina, etc.
Sim, é verdade que as leis são normas abstratas, que os princípios norteiam o sistema e que a jurisprudência, ainda que forjada em casos concretos, tenta mostrar caminhos para outros não necessariamente idênticos. Fatos juridicamente relevantes precisam ser enfrentados, tratados e os conflitos deles decorrentes têm de ser necessariamente resolvidos, nem que seja, no extremo, pelo Estado Juiz. Eis um outro princípio: proibição do juízo de non liquet.
Ocorre que, em situações absolutamente excepcionais, tal construção não se mostra assim tão simples. É inegável: há limites para que códigos e julgados consigam dar resposta a circunstâncias nunca vistas. A sociedade assiste abismada a um processo extremamente desafiador e, a se confirmar tudo o que se anuncia, após o surto da covid-19, o cenário é de pós-guerra, com empresas, organizações da sociedade civil e todo o aparato estatal precisando se reinventar, a fim de conseguir dar vazão ao que deles se espera. O mesmo vale para os indivíduos em suas respectivas células familiares e comunitárias. Tudo isso, aliás, já está se passando!
É como se as metáforas contratualistas de Hobbes, Locke e Rousseau estivessem sendo revisitadas: faz urgente um grande pacto social para a proteção e o comprometimento geral! E é justamente nestes momentos que as autoridades constituídas precisam demonstrar responsabilidade e sensibilidade.
É óbvio: isso cabe a todos! Pede-se também resiliência, paciência e criatividade dos cidadãos, mas - convenhamos - são os mandatários em seus respectivos entes federativos, os legisladores em seus específicos parlamentos, os julgadores em suas próprias competências e também, porque não dizer, os membros do Ministério Público, ante suas responsabilidades, que possuem infinitamente mais capacidade de interferir no que acontece e no que está por chegar.
Entretanto, algumas iniciativas parecem perigosamente levar a sociedade à barbárie jurídica, a um tipo de vale-tudo legislativo. Observa-se também com temor, data vênia, determinadas decisões judiciais e pronunciamentos de algumas promotorias de justiça eivadas de pura inconsequência.
Pinçando-se o tema da prestação de serviços educacionais, assustadores são projetos de leis locais que entendem razoável a aplicação linear compulsória de expressivos percentuais de desconto nas mensalidades, sem qualquer critério técnico que embase a "solução mágica". Para além da inconstitucionalidade da iniciativa legiferante já reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, há também carência de conhecimento da realidade da maioria dos estabelecimentos de ensino, que funcionam com tímidas margens de resultado operacional. Subtrair, com um só golpe, 20 ou 30% do faturamento bruto dessas organizações significa levar muitas à ruína.
Causa absoluta estranheza ver algumas Promotorias de Justiça emanarem "Recomendações" para que todas as escolas de um estado concedam abatimento nos preços, sem que o ato forneça qualquer sinal do método de cálculo e sem que se leve em consideração os desdobramentos para os estabelecimentos. Por fim, afloram decisões judiciais liminares que solenemente supõem que de um dos lados do negócio jurídico há corporações capazes de honrar seus compromissos com desfalque perene de receita.
Impossível também não expressar decepção com algumas entidades sindicais que miopemente conseguem neste cenário encontrar oportunidade para tentar ameaçar, chantagear e intimidar o que consideram "o lado oposto".
Por outro lado, elogios para manifestações como a da Secretaria Nacional do Consumidor do Ministério da Justiça, a do Ministério Público do Distrito Federal e também de Assembleias Legislativas e mesmo de Associações de Representantes de alunos que, não ignorando as consequências da pandemia e o drama das famílias, lembram que não serão medidas açodadas e tecnicamente frágeis as capazes de encontrar a melhor saída.
Sim, é fato que a norma civil contempla a dita teoria da imprevisão e outras hipóteses e consequências para eventuais desequilíbrios econômicos de contratos, exigindo a renegociação ou, em casos mais agudos, a rescisão do negócio. Mas, aludindo ao que foi lembrado acima, a letra fria da norma não raro se mostra impotente, face à sua desconexão com o suporte fático circunstancial.
Socorrer-se no senso comum da judicialização massificada e desenfreada pode importar em ilusória e temporária sensação de defesa, mas as consequências da falta de diálogo e o desprezo neste momento pelo caminho da negociação e do bom senso trarão a todos um preço muito caro a ser pago.
Ou entendemos todos que neste momento é melhor que cada um aceite perder um pouco, ou o prejuízo será grande, generalizado. Uma outra espécie de pandemia, igualmente contagiosa, rápida e letal.
*Hugo Sarubbi Cysneiros, sócio do Sarubbi Cysneiros Advogados Associados