Quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025. Enquanto a cúpula do Judiciário se reunia em mais um convescote pomposo, cercada de suas claques de sempre e de uma imprensa acrítica, para o lançamento do Programa “Pena Justa”, um ciclista foi covardemente assassinado nas imediações de um parque público da cidade de São Paulo.
Sob aplausos, o presidente do Supremo Tribunal Federal lançou o “Pena Justa”, programa que estabeleceria 300 metas a serem alcançadas até 2027, como “exercício de empatia” para garantia a “dignidade da pessoa presa” e para que sejam “acolhidas pelo Estado” e não “pelas organizações criminosas”. “Que belo e fantástico discurso”, alguns disseram. “Que perfeita a concatenação de frases e de intenções”, outros comentaram. E, ao final, sucederam-se brindes ao ar pelo enfrentamento do assim denominado “Estado de Coisas Inconstitucionais”, reconhecido como “violação massiva de direitos fundamentais” dos presidiários no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347.
Sob silêncio, o carro funerário transportou o corpo do ciclista assassinado, de forma cruel, sem qualquer chance de se defender de seus algozes, em razão de um mísero aparelho celular. “Que triste e repugnante mundo violento”, disse um popular atônito. “Que malfadada sucessão de atos covardes e violentos”, outros comentaram, ao relembrarem o estridente barulho do disparo e os últimos suspiros por vida, diante do real “Estado de Coisas Inconstitucionais”, não reconhecido pela Cúpula do Judiciário como violação massiva ao direito à vida, em um estado de permanente insegurança coletiva, não retratada em qualquer Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) que tramita na Corte Suprema.
Os dois fatos poderiam ser retratados como “mera coincidência”, se estivéssemos em país cujos índices de criminalidade fossem controlados, se o senso de cidadania abarcasse de forma generalizada a população a lhe proporcionar o conforto da segurança. Mas, infelizmente, não são. Pelo contrário, é apenas mais um capítulo do cotidiano vivido, onde a realidade das ruas não passa nem perto das portas e janelas dos Tribunais Superiores; onde o clamor da população e o choro dos familiares enlutados não perfazem a cognição daqueles que ocupam o degrau superior da Justiça e que, portanto, indiferentes às dores reais, fantasiam o mundo com crenças ideológicas desconexas do todo.
Eis os dois lados da moeda. Mas de uma moeda viciada, cujo lançamento ao ar termina sempre com a face da impunidade e dos criminosos voltada para cima, enquanto permanece no esquecimento a face das vítimas e dos familiares enlutados.
Ao contrário do que possa parecer, o problema da impunidade do país não está apenas na letra fria da Lei. Óbvio que a necessidade de reforma legislativa tem a sua parcela de responsabilidade no cenário atual. Mas, o que mais impacta atualmente a insegurança coletiva é a ausência de estrutura adequada dos órgãos de repressão e investigação criminal e os vieses cognitivos presentes nos julgadores.
Muito se propala que o “Brasil prende muito”, que as “prisões estão superlotadas”, que seria preciso “desencarcerar” a fim de garantir a dignidade humana dentro da prisão. Mas, como o “Brasil prende muito”, se a fração de crimes investigados e punidos é ínfima perto do todo?
Recentemente, no estudo denominado “Zonas de Impunidade”, foram analisados os dados de criminalidade do Estado de São Paulo, de 2014 a 2023. E os números são alarmantes. Na última década, apenas 19% de todos os crimes noticiados nos Distritos Policiais se transformaram em investigações propriamente ditas. Isto é, o cidadão, vítima de crime, faz o boletim de ocorrência e cerca de 81% destes fatos noticiados não evoluem para inquéritos policiais. Em outras palavras, estes fatos nem aparecem nas estatísticas do Ministério Público e do Poder Judiciário!
Desse universo de 19% que se transformam em investigação, apenas 3,9% são decorrentes de prisões em flagrante delito. Isto é, apenas 3,9% dos crimes acarretam prisão em flagrante, são levados às audiências de custódia e posteriormente se transformam em investigação e ação penal. Logo, quando se solta um criminoso em uma audiência de custódia, após o cometimento do crime, se está a tratar apenas de menos de 4% de todo crime ocorrido na sociedade.
Mas é possível piorar um pouco o cenário.
Em relação aos crimes de roubo, por exemplo, apenas 9,17% das ocorrências noticiadas pelos cidadãos à Polícia se transformaram em investigação propriamente dita e posterior ação penal. isto é, mais de 90% dos crimes de roubo noticiados não chegaram ao conhecimento do Ministério Público e do Poder Judiciário.
Mas ainda é possível avançar. Apenas 6% dos crimes de roubo de veículos se transformam em investigações, apenas 2% dos crimes de roubo de celulares se transformam em investigações, apenas 8% dos crimes de roubo de carga se transformam em investigações, apenas 25% dos crimes de roubo de residências se transformam em investigações. E este cenário se repete, em maior ou menor extensão, aos demais delitos como furtos, tráfico de drogas, porte de arma etc.
E até agora foram abordados apenas os números de ocorrências criminais que não resultaram em investigação propriamente dita. É ainda possível piorar um pouco mais.
Daquele universo, no qual apenas 19% de ocorrências que se transformaram em inquéritos policiais, apenas 5,85% em média evoluíram para ações penais ajuizadas pelo Ministério Público no Poder Judiciário. Ou seja, cerca de 95% dos crimes em geral não se transformaram em ações penais e, consequentemente, não resultaram em condenações e prisões.
Ora, como é possível bradar aos quatro cantos que “o Brasil prende muito”, que existe “encarceramento em massa”, se o universo de crimes que são levados a julgamento pelo Poder Judiciário representa algo em torno de 5% do total? Se, dos condenados, grande parte deles cumpre pena em regime aberto, nas ruas, sem fiscalização qualquer, e ainda têm suas penas extintas anualmente por indultos presidenciais cada vez mais elásticos, com os decretos natalinos de 2023 e 2024? Somente iluminados que não vivem o cotidiano, que não frequentam as ruas, que não estão próximos da população podem propalar tamanho disparate.
Se de um lado a ausência de estrutura de prevenção e investigação de crimes é claramente deficitária, de outro, os vieses cognitivos de grande parte do Poder Judiciário amplificam a insegurança e impunidade epidêmica das ruas. O pressuposto ideológico de que o criminoso é uma mera “vítima da sociedade” e de que o crime é “produto do meio”, e não das escolhas do próprio ser humano, infantiliza e torna superficial qualquer compreensão da realidade posta. Insere o criminoso em um determinismo coitadista a lhe retirar a responsabilidade pelos atos cometidos e torna vilã a sociedade como um todo, em uma dicotomia rousseniana desprovida de lógica.
Exemplo disso é a transformação do remédio constitucional do Habeas Corpus em elixir da impunidade. Apenas a título exemplificativo, em 2024, mais de 17 mil Habeas Corpus foram concedidos pelo STJ. E o roteiro é sempre o mesmo: apenas com base nas alegações feitas pela Defesa, sem qualquer contraditório e pelas mais diversas teses mirabolantes, milhares de ações penais são trancadas, operações policiais são anuladas, penas são revistas, e criminosos são colocados nas ruas sem qualquer cerimonia em todos os cantos deste país. E ainda com direito à devolução de seus “bens” adquiridos pela prática delitiva, como, por exemplo, um simples helicóptero...
É preciso que a cúpula do Poder Judiciário abandone o mundo platônico das ideias e conheça a realidade aristotélica posta. Que saia às ruas, frequente feiras e mercados, caminhe pelas calçadas, parques e avenidas, conheça o calvário cotidiano das vítimas, ouça seus lamentos e suas verdades, e as enxergue não pelo branco opaco das folhas do processo. Que perceba, no dia a dia, o crescimento econômico das organizações criminosas, o lucro fácil advindo de seus delitos e a lavagem deles nas mais diversas frentes. Que veja, com seus olhos, os mandamentos impostos pelas organizações criminosas nas periferias, a sequestrar a liberdade dos cidadãos, e os Tribunais da Morte que se seguem pela violação de suas “normas”. Somente assim se darão conta de que o crime está no dia a dia, na porta de cada cidadão e que este é o verdadeiro prisioneiro atrás dos portões suas casas.
Do contrário, enquanto estiver em gabinetes, com portas e janelas cerradas, blindadas da voz da população e separada pelo aparato de segurança que a cerca, certamente jamais compreenderá a pena injusta imposta a uma sociedade perpetuamente insegura.
Observação: O artigo se valeu do triste e lamentável destino do ciclista paulistano, que sucumbiu sob a frieza das mãos de seus assassinos. Mas poderia ser ilustrado também pelos bárbaros crimes ocorridos nas ruas do Recife nas últimas semanas, pelo turista argentino ou pela turista paulista, assassinados após entrarem por engano em uma favela carioca respectivamente em janeiro e em dezembro passado, ou por qualquer uma das 40 mil pessoas assassinadas no último ano; inclusive daquelas que acabaram de ser executadas enquanto você lia este retrato do nosso infausto cotidiano.