
Após o reconhecimento da pandemia decorrente do surto da doença (covid-19) ocasionada pelo novo coronavírus, a Organização Mundial de Saúde (OMS) recomendou fortemente o distanciamento social horizontal entre pessoas sãs, o isolamento das pessoas suspeitas de portarem ou portadoras do Sars-CoV-2 e a restrição de atividades em geral (quarentena) com o claro objetivo de salvar vidas.
Tais medidas têm sido adotadas gradativamente pela grande maioria dos países e vão desde o fechamento de escolas, shoppings, academias e comércio até a restrição da circulação de pessoas nas ruas. Principalmente em cidades italianas, espanholas e alemãs, a população está autorizada a sair de casa apenas para comprar alimentos, medicamentos ou ir ao hospital, por vezes em sistema de revezamento. Embora as diferentes condutas estabelecidas por governos de países, por estados ou cidades gerem opiniões controversas acerca de seu rigor ou insuficiência, um aspecto é indiscutível: precisamos de que os trabalhadores das denominadas atividades essenciais continuem trabalhando em prol da sobrevivência de todos, especialmente para tratarem as vítimas da covid-19.
No Brasil, as atividades essenciais foram definidas pelo Decreto nº 10.282, de 20 de março de 2020, que regulamenta a Lei nº 13.979/20. O artigo 3º do referido decreto dispõe que "São serviços públicos e atividades essenciais aqueles indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade, assim considerados aqueles que, se não atendidos, colocam em perigo a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população".
Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), os trabalhadores e suas famílias devem ser protegidos dos riscos à saúde ocasionados pela covid-19 no local de trabalho. Para a OIT, é de se exigir uma postura responsável das empresas, cabendo aos empregadores monitorar constantemente as orientações fornecidas por autoridades no assunto, visando à orientação correta dos trabalhadores e à adoção de medidas que evitem o propalado contágio.
Nesse cenário, as decisões dramáticas relativas a escolher entre quem deve viver ou morrer, relatadas por médicos europeus diante do gradual colapso dos sistemas de saúde dos seus países, poderiam ser evitadas, em importante medida, em momento anterior a esse. Na verdade, esse dilema já surge quando hospitais, supermercados, farmácias, empresas de transporte, inclusive desenvolvedoras de aplicativos com essa finalidade, ou quaisquer outros empregadores decidem preservar ou não seus trabalhadores em grupos de risco (imunodeficientes, idosos, diabéticos, hipertensos, asmáticos), quando os submetem ao transporte coletivo ou privado, ou então quando decidem fornecer ou não equipamentos de proteção individual (EPIs) suficientes (álcool em gel, óculos, protetores faciais, capotes, gorros) e ambientes apropriados (lavatórios e distanciamento entre os postos de trabalho). Além disso, a adoção de jornadas de trabalho não exaustivas e em conformidade aos limites constitucionalmente estabelecidos também configura importante medida protetiva a ser considerada pelos empregadores.
Particularmente para os profissionais que atuam diretamente no combate ao Sars-CoV-2, os EPIs são as únicas proteções possíveis para se evitar a contaminação, especialmente porque esses trabalhadores não podem distanciar-se socialmente e lidam com pacientes com alta carga viral. No entanto, denúncias da Associação Médica Brasileira e do Conselho Federal de Enfermagem apontam que o Brasil já tem cerca de 8 mil registros de falta de EPIs.
Em relação à responsabilidade dos empregadores em razão do adoecimento ocupacional dos trabalhadores pela covid-19, vale destacar que os preceitos consagradores dos direitos e garantias fundamentais não se dirigem exclusivamente ao Estado. A eficácia desses direitos deve ser observada também entre trabalhadores e empresas.
Dito isto, é de se indagar a respeito da responsabilização indenizatória dos empregadores no contexto da pandemia e do crescente adoecimento ocupacional dos trabalhadores, ou ainda se a covid-19 pode ser caracterizada como doença profissional.
A OIT já se manifestou acerca da possibilidade de caracterização da covid-19 como doença profissional, como têm feito alguns países por meio de legislações próprias. E, de fato, à luz da interpretação sistemática da normas brasileiras, a covid-19 pode ser caracterizada como doença ocupacional (ou profissional), caso o adoecimento seja desencadeado pelo exercício do trabalho característico à função dos trabalhadores, mais comum na situação dos profissionais de saúde, ou ainda como doença do trabalho, quando causada pelo meio ambiente laboral ou por condições especiais de exposição.
Em ambos os casos, o empregado doente deverá ser indenizado pelo empregador, seja em decorrência da responsabilidade pela atividade de risco (chamada objetiva), seja em face da responsabilidade por culpa ou dolo do empregador (chamada subjetiva), existente nos casos de negligência. Realmente, a Constituição de 1988 consagra (artigo 7º, XXVIII) a responsabilidade do empregador pelo dano que causar ao trabalhador, mediante comprovação de dolo ou culpa (responsabilidade subjetiva). O Código Civil, por sua vez, prevê a responsabilidade objetiva do autor do dano nos casos de atividade de risco ou quando houver expressa previsão legal, situação em que não é necessária a comprovação de dolo ou culpa (parágrafo único do artigo 927). A regra civilista é perfeitamente aplicável às relações trabalhistas, como amplamente reconhecido pela Justiça do Trabalho. Destaque-se que, muito recentemente, o Supremo Tribunal Federal reafirmou a constitucionalidade do referido dispositivo do Código Civil.
Assim, embora a Medida Provisória nº 927, de 22 de março de 2020, em seu artigo 29, tenha pretendido excluir a natureza ocupacional das contaminações por Sars-Cov-2 ocorridas no ambiente de trabalho de modo apriorístico e abstrato, a norma é incompatível com o texto constitucional vigente (artigos 7º, XXII, e 225 da Constituição). Há forte embasamento jurídico a sustentar que a responsabilidade do empregador em caso de adoecimento por covid-19 dos profissionais de saúde e em outras atividades essenciais é objetiva. Isso porque o risco da atividade desempenhada por tais trabalhadores é inerente ao fato de ser necessário, em suas funções ordinárias, o trato frequente com pessoas contaminadas com o novo coronavírus, diante do surto de adoecimentos em escala mundial.
Como se sabe, o heroísmo é uma categoria social antiga. Considera-se herói quem age independentemente da opinião pública, com coragem e determinação, mesmo nas piores adversidades, apesar das consequências que possa vir a sofrer. Na antiguidade, estava atrelado ao uso da força. A tradição judaico-cristã alterou a concepção de heroísmo, ao concebê-lo como um processo diário e oculto de sacrifício em favor de outrem.
Aos trabalhadores chamados a enfrentar a covid-19, direta ou indiretamente, conforme a profissão que abraçaram ou o emprego que conseguiram obter, inclusive mediante a realização de trabalho extraordinário, é devido mais que a alcunha de heróis e o reconhecimento por meio de aplausos. Eles merecem, de modo preventivo, o gozo de toda proteção a que fazem jus, assim como a pequena paz de consciência de saberem que sua família, apesar de suas ausências, receberá justa compensação, se vierem a falecer no campo do bom combate. O ordenamento jurídico brasileiro, felizmente, assegura-lhes esses direitos, ainda que alguns empregadores ou governantes possam vir a querer descumpri-los, o que nos faz recordar a famosa frase de Lacordeire: "Entre os fortes e fracos, entre ricos e pobres, entre senhor e servo é a liberdade que oprime e a lei que liberta".
*Denise Arantes é advogada com atuação destacada no Tribunal Superior do Trabalho e sócia em Mauro Menezes & Advogados; Gustavo Ramos é advogado, mestre em Direito das Relações Sociais e Trabalhistas e sócio-diretor em Mauro Menezes & Advogados