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Notícias e artigos do mundo do Direito: a rotina da Polícia, Ministério Público e Tribunais

A verdade na ficção

Por José Renato Nalini
Atualização:
José Renato Nalini. Foto: IARA MORSELLI/ESTADÃO

Por obra e graça de minha querida amiga Rosa Maria de Andrade Nery, deliciei-me com a leitura de "Direito e Literatura - a verdade na ficção", livro de Eduardo de Oliveira Leite. Ele analisa três autores: William Shakespeare, Franz Kafka e Jean-Claude Carrière, explorando a estreita conotação entre literatura e o drama judiciário. Como observa Rosa Nery em seu prefácio, que chamou "a sentença não encerra o desalento", pode-se "dizer que a vivência da Justiça é uma espécie de verdade e o sofrimento da injustiça é estado de quem é atingido pela mentira. A meia-verdade é um perigo, porque dá aos dois lados argumentos e justifica 'que a vileza que me ensinais, eu executo".

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Ao apresentar sua obra, Eduardo de Oliveira Leite observa que "as relações entre o Direito e a Literatura não são tênues mas, ao contrário, tão intensas que, por vezes se confundem, porque ambas, embora tendo como origem fontes distintas, se originam sempre de um mesmo elemento mágico: a palavra". Invoca François Ost, para quem "os juristas ensinam que a coisa julgada é tida por verdadeira, ficção que certamente tornou-se necessária pelas exigências da vida social e pela necessidade de decidir, mas que é também aproximação e às vezes injustiça, que os autores não cessarão de denunciar e de por em dúvida, a ficção literária fazendo-se então, a porta-voz de uma outra verdade".

A primeira obra examinada é "O mercador de Veneza", do bardo inglês. Os apreciadores de Shakespeare sabem que o tema é a situação de Shylock, um judeu que vivia da usura em Veneza, ou seja, empresta dinheiro a juros. O agiota contrata com Antônio, mercador em Veneza e, diante da inadimplência do devedor, exige o cumprimento do contrato: uma libra de carne de quem não conseguiu satisfazer os juros do empréstimo.

Shakespeare bem conhecia a situação dos judeus na Inglaterra. A eles os potentados recorriam para obter financiamento, mas ao mesmo tempo já se constatava o repúdio que se manteve e se intensificou. Tanto que o nazismo foi emblemático no abjeto antissemitismo, hoje racionalmente convertido em crime hediondo.

Há um trecho da peça em que Shylock se mostra um ser humano em tudo igual aos demais. Constitui autêntico brado contra qualquer espécie de discriminação e vale a pena reproduzi-lo, para extrair outras reflexões:

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"Eu sou um judeu. Um judeu não tem olhos? Um judeu não tem mãos, órgãos, dimensões, sentidos, afeições, paixões? Não é alimentado pela mesma comida, ferido pelas mesmas armas, sujeito às mesmas doenças, curado pelos mesmos meios, esquentado e regelado pelo mesmo verão e inverno, tal como um cristão? Quando vós nos feris, não sangramos nós? Quando nos divertis, não nos rimos nós? Quando nos envenenais, não morremos nós?".

Pensei na atualidade da mensagem, quanto ao extermínio genocida dos yanomamis. Tragédia anunciada, porque não faltaram avisos. Há décadas se anuncia a fragilidade da etnia, alvo da cobiça de garimpeiros, dendroclastas, posseiros e outros criminosos e da criminosa omissão do governo.

Será preciso reler o Padre Antonio Vieira, para chegar à conclusão de que o indígena é ser humano? E como têm razão os que enxergam deficiências no sistema Justiça, incapaz de reservar a cada integrante da espécie o tratamento digno e compatível com o pacto fundante. Afinal, a Constituição da República se ampara sobre o supra princípio da dignidade da pessoa. Todo ser integra a espécie e é igualmente merecedor de consideração e respeito.

É chocante o paradoxo da humanidade: obtém ganhos fantásticos em longevidade, em conquistas científicas e tecnológicas, e continua a se portar como nossos ancestrais, do tempo das cavernas.

Por isso é importante que a comunidade jurídica, na crescente expansão das profissões ligadas ao direito, já que estamos no país que tem mais faculdades de direito do que a soma de todas as outras espalhadas pelo planeta, se conscientize de suas responsabilidades éticas. A leitura de livros como o de Eduardo de Oliveira Leite, prefaciado e recomendado pela jurista Rosa Maria de Andrade Nery, é um bom exercício de reconversão ética. Embora proclamemos o dogma de que no processo vale a verdade dos autos, a ficção tem desenvoltura para mostrar que em muitos processos ela escapa, é manipulada, é oculta ou desprezada por aqueles que se valem das estruturas humanas da Justiça.

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*José Renato Nalini é diretor-geral da Uniregistral, docente da pós-graduação da Uninove e secretário-geral da Academia Paulista de Letras

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