
Muitos ainda acreditam que o abandono do lar é um conceito jurídico utilizado como fundamentação dentro da discussão de culpa pelo fim do relacionamento afetivo. Como se a culpa fosse um elemento capaz de conduzir a aplicação da lei no que diz respeito à partilha de bens. Aqui, importante frisar, não se trata da culpa prevista no âmbito criminal, mas, sim, da culpa pelo fim do relacionamento e os fundamentos para este fato.
Assim, juridicamente, após o reconhecimento do divórcio como direito potestativo (basta que apenas um dos cônjuges manifeste seu desejo para que seja decretado, sem a necessidade de citação/intimação do outro ou até mesmo apresentação de "defesa") encerrou-se todas as questões derivadas da discussão de culpa pelo fim de relacionamento, e as possíveis sanções que eram aplicadas quando constatadas a culpabilidade de um dos cônjuges/companheiros, dentre elas, o abandono do lar e a traição.
Porém, cabe ressaltar que são muito comuns as situações em que o divórcio é postergado por ameaçadas de um dos cônjuges, que se nega a sair do lar e, ao mesmo tempo, afirma que, se o outro sair, caracterizado estará o abandono de lar e a perda dos direitos decorrentes do fim da relação conjugal.
Contudo, apesar de não ter mais efeitos com relação ao divórcio, o abandono de lar é ainda importante para fins de Direito Civil, mais especialmente no que concerne à questão imobiliária: o usucapião familiar, conforme artigo 1.240-A do Código Civil, que afirma:
"Art. 1.240-A. Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade dividia com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural."
Ressalta-se que o abandono tratado neste artigo é algo voluntário, que jamais poderá ser confundido com qualquer fundamento plausível para que a convivência entre os cônjuges seja encerrada. Abandono do lar é espécie, e abandono da família é gênero. Desta forma, o intuito do legislador foi diminuir a situação endêmica que atinge o Brasil pela enorme quantidade de pais que abandonam voluntariamente o lar, deixando a mulher sozinha com os filhos menores. Diante disso, o que normalmente acontece é o rompimento definitivo de laços, gerando o desamparo à família.
Neste sentido, o abandono do lar pode ser facilmente descaracterizado com algum registro, formal ou informal, de intenção ou desejo pelo fim da conjugalidade. Um simples registro ou formalização do interesse no divórcio pode descaracterizar o abandono do lar e, consequentemente, o usucapião familiar.
Conclui-se que a lei buscou punir, com a perda da propriedade, o indivíduo que age de maneira irresponsável diante do núcleo familiar. E, com isso, deixa de cumprir um dos fundamentos principais do nosso ordenamento jurídico, qual seja, o princípio da dignidade da pessoa humana.
*Samira de Mendonça Tanus Madeira é advogada (OAB/ RJ 174.354), com especialização em Direito Processual Civil, Planejamento Sucessório e Direito Imobiliário. Extensão em Contract Law; From Trust to Promisse to Contract - Harvard University. Sócia do escritório Tanus Madeira Advogados Associados, fundado em 1983, com unidades nas cidades do Rio de Janeiro e Macaé- RJ