
No final da manhã desta sexta-feira, 24 de abril de 2020, em meio a uma pandemia que requer todas as atenções voltadas para a área da saúde pública, aguardamos um deslocado pronunciamento do Ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro. Ouvimos uma verdadeira delação. O conteúdo justificou a impertinência da intervenção em meio à pandemia. Com sobras. A sensação era a de retorno aos tempos em que a operação lava jato atuava ao lado da imprensa, publicando delações que traziam incertezas em meio à crise e conduziam dirigentes nacionais à prisão.
Não foi diferente na manhã de hoje.
Ao descrever, em detalhes, que o Presidente da República interferiu no comando da Polícia Federal de modo injustificado e para proteger interesses pessoais, obter relatórios de inteligência, manifestar preocupação com inquéritos policiais que tramitam perante o Supremo Tribunal Federal, além de falsear a motivação da saída do diretor geral da PF (que não foi 'a pedido'), Moro revelou diversos crimes praticados pelo Presidente da República que permitem o seu impedimento.
Inicialmente, é preciso destacar que o Ministro da Justiça, no exercício de suas funções, goza de presunção de veracidade e legitimidade em todos os seus atos administrativos, incluindo-se pronunciamentos, conforme disposto pela Constituição da República, em seu artigo 37. Portanto, por se tratar de um agente público, da administração direta, investido no cargo, suas revelações possuem presunção de veracidade e valor probatório mais elevado do que um mero depoimento civil.
Dentro desse contexto jurídico inafastável de presunção de veracidade, ao afirmar que o Presidente da República visou a substituição do comando máximo da Polícia Federal para proteger interesses pessoais, tais como obter relatórios sigilosos e estratégicos de inteligência, manter contato direto com o comando máximo da polícia para esse fim, além de objetivar acesso ao conteúdo de investigações que tramitam sob sigilo no Supremo Tribunal Federal, o Ministro revelou a prática manifesta de crimes por parte do chefe do Poder Executivo Federal, que pavimentam a estrada do impedimento.
Quando pouco, temos a prática de ato de improbidade que configura, por conseguinte, crime de responsabilidade, conforme o microssistema penal previsto inicialmente no parágrafo 4º, do artigo 37, da própria Constituição da República. Sistema esse que é disciplinado pela lei 1.079/50, em seu artigo 4º, inciso V. Nesse tecido legislativo, temos que a Constituição prevê que os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, sem prejuízo da ação penal cabível. Por seu turno, a lei 1.079/50 dispõe que a prática da improbidade administrativa é crime de responsabilidade que pode gerar a perda do cargo, com inabilitação, por até cinco anos, para o exercício de qualquer função pública.
Mas não é só.
As revelações do Ministro Sérgio Moro evidenciam uma clara e direta tentativa de interferência nas investigações, por parte do Presidente em exercício. Observe-se que, em suas declarações, o Ministro destaca: "Falei para o presidente que seria uma interferência política. Ele disse que seria mesmo", afirmou Moro. Trazendo a revelação fática para suas implicações jurídicas, temos que tal comportamento pode configurar o crime de obstrução de justiça, previsto na lei 12.850/2013, em seu artigo 2º, parágrafo 1º, pois quem impede ou, de qualquer forma, embaraça a investigação de infração penal, pratica a conduta proibida pela mencionada lei.
Claro, deverão estar presentes os demais elementos constitutivos do crime, nesse caso, a existência de um inquérito no STF que apure a formação de uma organização criminosa, situação que, no entanto, parece estar preenchida pelo Inquérito 4.781/2019, que tramita no Supremo Tribunal Federal sob a presidência do Ministro Alexandre de Moraes.
Ouvimos uma revelação detalhada de atos do Presidente da República que configuram a prática de crimes. Há viabilidade para o impedimento. As declarações possuem presunção de veracidade e legitimidade. Presunções que podem ser afastadas, pois são relativas. Resta saber o que o presidente da Câmara dos Deputados irá fazer com as dezenas de pedidos de impedimentos que serão protocoladas na próxima semana com os fundamentos dados pela delação de Sérgio Moro.