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Notícias e artigos do mundo do Direito: a rotina da Polícia, Ministério Público e Tribunais

Como as ditaduras nascem

Por Saad Mazloum
Atualização:
Saad Mazloum. Foto: Arquivo pessoal

Olhar para o passado nos permite enxergar padrões e compreender algo que estamos vivenciando nos dias atuais. Ao reconhecer semelhanças, ficamos com aquela estranha sensação de que a história se repete. De certa forma acredito que sim. Mudam as pessoas e o cenário, mas a humanidade intrínseca em cada um de nós é sempre a mesma. Nossos valores, sentimentos e desejos são os mesmos de sempre, em qualquer época, pois são eles que nos tornam humanos. Daí porque estamos continuamente incorrendo nos mesmos deslizes, repetindo os mesmos caminhos erráticos e isto é até compreensível (sim, apenas compreensível, mas não aceitável) diante do apetite por tudo o que possibilite sentir prazer ou provocar alguma satisfação.

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Mas é fato que a história nos ensina que estaremos diante de uma mente perturbada quando em alguém ou em um grupo percebemos a irresistível necessidade de sentir, por exemplo, o prazer pelo poder ilimitado sobre pessoas e destinos, ainda que isto custe a vida, a liberdade e o sofrimento de centenas, milhares e até milhões de pessoas.

Hitler, Mussolini e Stalin são uma prova disso, para ficarmos nos exemplos mais extremos. Claro, eles certamente justificaram (ou justificariam) que tinham uma missão a cumprir, que almejavam o bem do povo ou apenas pretendiam defender a ideologia de superioridade racial e coisas assim.

Os tiranos dos tempos atuais são menos destacados e um pouco mais discretos. E as justificativas para a usurpação do poder e o exercício do autoritarismo são aparentemente mais sublimes e modernas: acabar com a corrupção, fazer cumprir a Constituição, combater notícias falsas e até mesmo defender a democracia.

Na atualidade, todas as nações têm consciência da irresistível inclinação humana pelo poder absoluto e sem limites. Essa preocupação é antiga. Daí porque nossos antepassados procuraram estabelecer algumas regras que pudessem evitar a captura do poder por uma pessoa ou por um grupo, prevenindo instabilidades políticas e governos despóticos. Montesquieu brindou o mundo com a obra "Do Espírito das Leis" (1748), na qual estão expostas várias de suas teorias políticas, dentre elas a da tripartição do Poder e o sistema de freios e contrapesos. O controle do poder pelo próprio poder.

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A teoria da tripartição do Poder em funções distintas - Executivo, Legislativo e Judiciário -, independentes e harmônicas entre si, surgiu como forma de autorregulação, resultando em maior segurança aos cidadãos contra excessos do Estado. Aliás, é o que estabelece hoje nossa Constituição Federal, como cláusula pétrea, em seu art. 2º: "São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário".

Perfeito. Algo pode dar errado? Novamente recorremos ao que a história nos ensina. Afinal, sempre estará presente o fator humano e, como já observara Aleksandr Solzhenitsyn em seu livro "Arquipélago Gulag", que trata do seu terrível sofrimento e de milhões de pessoas na Rússia comunista de Stalin, "a linha que separa o bem do mal cruza o coração de cada ser humano". Então, se algo pode dar errado, você pode apostar que vai dar.

Sociedades e democracias bem planejadas podem simplesmente desabar quando os representantes ou líderes naturais (ou artificiais) dessas funções tripartidas se unem para deturpar o poder. Ou quando duas delas se articulam para anular a terceira. Em qualquer caso, não haverá mais harmonia e nem independência entre os Poderes, e isto implica em escancarar as portas para a opressão e a imposição de decisões e caminhos não desejados pela sociedade. É assim que nasce um regime autoritário e é assim que se formam os pequenos e os grandes tiranos.

Na verdade, basta que um dos Poderes da República se revele ousado demais, extrapolando os limites constitucionais - o que já é um claro prenúncio do autoritarismo -, e que os outros dois Poderes, por seus representantes, se mostrem omissos, débeis ou condescendentes, para que se estabeleça uma perigosa instabilidade política. Essa catastrófica adesão, por ação ou omissão, pode se dar por várias razões e aqui destaco a covardia, a conivência com a opressão, o medo, o oportunismo, a expectativa de benefícios e favores pessoais, políticos ou de grupo, assim como o miserável e insondável prazer da mera subserviência.

Dos três poderes da república, os mais perigosos para a instabilidade democrática são o Executivo e o Judiciário. O primeiro porque a ele normalmente compete exercer privativamente o comando supremo das Forças Armadas - como acontece no Brasil. O golpe de Estado com o uso das forças militares é o método clássico para a tomada do poder. Claro, tudo depende de outras circunstâncias, mas isso é detalhe que não cabe aqui discorrer. O fato é que a maioria dos golpistas são originários das forças armadas ou, de alguma forma, conseguem coopta-las e obter seu apoio.

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Até o século passado essa era a maneira mais comum de tomar o poder. Com o apoio das forças armadas, a ruptura da ordem democrática se fazia de forma rápida e traumática, mas sem muita dificuldade, diante do indiscutível poder de persuasão de metralhadoras em mãos treinadas e tanques de guerra ganhando as ruas.

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Mas o século 21 trouxe algumas inovações em matéria de subversão da ordem e imposição de um estado de exceção. E aqui chama a atenção o surgimento de um novo ator, representando agora não apenas a posição de garantidor ou coadjuvante, mas, quem diria, como protagonista de um regime de exceção: o Poder Judiciário, por seu órgão de cúpula.

O Tribunal Supremo de Justiça da Venezuela é exemplo de um Judiciário coadjuvante, tendo sido acusado de apoiar as práticas ditatoriais do presidente Nicolás Maduro. Desde a posse de Maduro em 2013, a Suprema Corte da Venezuela tem sido alvo de críticas por tomar decisões que favorecem o governo e limitam a independência dos demais poderes, incluindo o Legislativo e o Ministério Público.

Mas é sempre possível ir além e, de coadjuvante, tornar-se protagonista. Rui Barbosa sabia muito bem do que estava falando quando asseverou que "a pior ditadura é a ditadura do Poder Judiciário. Contra ela, não há a quem recorrer". De fato. E quando se fala em Poder Judiciário, seguramente a referência é para o órgão de cúpula - a Corte Suprema de um país, a instância máxima, normalmente composta por pouquíssimos magistrados, encarregados de dar a última palavra sobre várias questões, especialmente as mais complexas e relevantes para a sociedade.

Sabemos hoje que uma ditadura judicial se instala de forma gradual, com a tomada de decisões progressivamente autoritárias. O primeiro sinal de alerta surge quando se constatam recorrentes decisões parciais de uma Corte Suprema, sempre favoráveis (ou sempre desfavoráveis) a uma mesma pessoa, grupo ou corrente político-ideológica. Quando isso acontece, a credibilidade da Justiça se deteriora rapidamente e a confiança dos cidadãos na instituição e na democracia é abalada. O Estado Democrático de Direito começa a ruir exatamente aqui.

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E parece claro também que a ameaça à democracia não está apenas no uso de armas e tanques nas ruas, mas também na imposição de práticas autoritárias disfarçadas de defesa da democracia ou combate à desinformação. Assim como ocorreu na Venezuela, magistrados com tendências tirânicas com o tempo vão perdendo o pudor. Com o passar do tempo, sentindo-se seguros e sem enfrentar resistência, passam a praticar aberrações jurídicas espantosas, perceptíveis até para pessoas leigas. São criativos. Concebem ou dinamizam teses novas ou bizarras, vazias de conteúdo - e nelas tudo cabe para suprimir a diversidade política e de opinião. Sobram motivos para imposição de uma rigorosa censura para todos e para tudo. Instituições incumbidas pela Constituição de defender a ordem jurídica e o regime democrático são simplesmente ignoradas e relegadas a segundo plano - seus chefes, submissos ou atordoados, encontram dificuldades ou receio de reagir e cumprir seu papel, seu dever constitucional.

Sob essa roupagem e para tão nobres pretextos - acabar com a corrupção, combater notícias falsas e defender a democracia - vale tudo, mesmo em se tratando de um Poder originariamente incumbido de garantir a aplicação justa e imparcial das leis, promover a justiça e a equidade para todos os cidadãos. Vale perseguir e prender opositores, violar a liberdade de expressão, prender jornalistas, fechar jornais ou censurar notícias. E nessa nova era digital, em que estamos todos conectados em redes sociais pela Internet, vale também eliminar blogues e páginas pessoais, além de cancelar perfis em redes sociais de pessoas influentes (ou apenas inconvenientes).

Aliás, o cancelamento ou banimento de importantes aplicativos de mensagens instantâneas, redes e canais da Internet - e das pessoas que legitimamente as utilizam - é a versão moderna e edulcorada de "sumir com alguém". Enfim, o objetivo de sempre é o mesmo: provocar medo e terror. Pessoas com medo - medo de arcar com multas milionárias, de perder seu emprego ou sua empresa - são pessoas submissas e bastante obedientes, sem dúvida alguma.

A ameaça de imposição de multas astronômicas - sem um processo estabelecido e portanto sem a observância dos princípios que lhe são inerentes (devido processo legal, sistema acusatório, contraditório, ampla defesa e demais princípios que normalmente figuram em Constituições democráticas) - é a fórmula eficaz para compelir pessoas, grandes empresas de tecnologia e veículos de comunicação a rapidamente cumprirem as ordens de fazer ou não fazer ("cumpra-se imediatamente, sob pena de multa horária de..."). Cuidando-se de instância máxima do Poder Judiciário, não cabe recurso e nem há a quem recorrer.

Esse extraordinário poder de coerção, nestes tempos modernos e em ambiente de aparente democracia, é infinitamente mais eficaz, mais "limpo" e mais persuasivo que prisões, tropas armadas e tanques Urutus nas ruas - coisas de um passado distante, de ditaduras do século passado, indissimuláveis, bastante dispendiosas e chamativas demais.

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Em "Como as Democracias Morrem", obra escrita pelos professores de ciência política da Universidade de Harvard, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, há um alerta perturbador. Segundo eles, "uma das grandes ironias de como as democracias morrem é que a própria defesa da democracia é muitas vezes usada como pretexto para a sua subversão" - uma grande ironia do processo de morte das democracias.

Então, fique alerta quando uma única pessoa, sozinha, concentra em suas mãos a responsabilidade de proteger o Estado Democrático de Direito, garantir a observância da Constituição, combater as notícias falsas e o que mais lhe der na telha (deve ser o auge do poder impor unilateralmente o que é verdade e o que não é, o que é correto e o que não é, o que é moral e o que não é). Nesse mesmo contexto, continue alerta, redobrada agora, quando essa mesma única pessoa, a fim de supostamente defender aqueles valores e combater aquelas ameaças, também reúne e concentra em suas mãos, sem espaço para contestações e recursos, as tarefas de investigar, acusar e decidir.

Como dito, a defesa da democracia, da Constituição, o combate à corrupção e às notícias falsas são desculpas frequentemente utilizadas em todo o mundo por aspirantes a autocratas para justificar os excessos e a imposição de medidas contrárias aos princípios democráticos. E assim satisfazer e estabelecer sua própria ideologia ou visão de mundo, seus próprios desejos de poder e controle. E para favorecer, sempre e recorrentemente, a mesma pessoa ou o mesmo grupo, a mesma corrente ideológica ou o mesmo partido político. Tudo isso enquanto se mantém a aparência de uma democracia. Uma estranha democracia sem diversidade.

Nesse cenário, surge a pergunta: quem teria coragem de se opor a essa peculiar forma de ditadura? Certamente não um parlamentar hesitante ou pusilânime, nem uma imprensa condescendente ou descomprometida com sua verdadeira missão. Certamente, enfim, não um povo escravizado pela ignorância, pelo medo ou pela apatia.

Daí a importância de estar atento e vigilante para identificar sinais de uma democracia em risco. A ameaça não está apenas nas armas e tanques nas ruas, mas também nas medidas antidemocráticas disfarçadas de defesa da democracia e outras justificativas aparentemente nobres. A luta pela preservação dos valores democráticos deve ser um compromisso de todos os cidadãos conscientes, pois é somente por meio do engajamento da sociedade civil que é possível coibir reais abusos e excessos que ameaçam a democracia.

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*Saad Mazloum é procurador de Justiça e membro do Conselho Superior do Ministério Público de São Paulo

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