
Com o agravamento da situação de endividamento dos entes públicos decorrente da pandemia de Covid-19 e a necessidade de assegurar recursos à área da saúde e de prover auxílio emergencial aos brasileiros afetados pela desaceleração da economia, ocorreram relevantes alterações legislativas e estão sendo proferidas decisões judiciais que impactam negativamente o pagamento de precatórios em atraso pelos Estados, Municípios e Distrito Federal.
Em relação às alterações legislativas, em 15 de março de 2021, o Congresso Nacional promulgou a Emenda Constitucional nº 101/2021 ("EC nº 101/2021"), originada do Projeto de Emenda Constitucional nº 186/2019 ("PEC Emergencial") e cujo principal foco consistia na aprovação de um novo auxílio emergencial residual à população brasileira para "enfrentar as consequências sociais e econômicas da pandemia da Covid-19", em decorrência do agravamento dos efeitos.
No entanto, a EC nº 101/2021 também promoveu relevantes alterações nas disposições constitucionais que versam sobre o pagamento de precatórios e na estrutura do denominado regime especial para que os Estados, Municípios e o Distrito Federal efetuem a liquidação do estoque de precatórios em atraso, prorrogando o prazo para quitação de todo o estoque de precatórios em atraso para 31 de dezembro de 2029.
A metodologia de pagamento de precatórios em atraso é regida pelo artigo 100 da Constituição Federal, em conjunto com o artigo 101 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, conforme acrescentado pela Emenda Constitucional nº 30/2000. Em linhas gerais, a Constituição Federal determina que um precatório emitido até 1º de julho de um determinado exercício deverá ser pago até 31 de dezembro do primeiro exercício imediatamente subsequente, ou seja, no prazo máximo de 18 (dezoito) meses e que um precatório emitido após 1º de julho de um determinado exercício deverá ser pago até 31 de dezembro do segundo exercício subsequente, ou seja, no prazo máximo de 30 (trinta) meses.
Contudo, em decorrência da reiterada incapacidade dos entes públicos de quitar seus precatórios, a Emenda Constitucional nº 62/2009 ("EC nº 62/2009") estabeleceu um regime de exceção, estendendo o prazo para pagamento dos precatórios em atraso em até 15 (quinze) anos, o que foi objeto de inúmeros questionamentos e críticas. A EC nº 62/2009 teve a sua constitucionalidade posteriormente declarada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade nºs 4.357 e 4.425, razão pela qual foi extinto o regime de exceção para pagamento de precatórios em atraso. Entretanto, diante da existência de um elevado estoque de precatórios em atraso, houve a instituição de uma regra de transição para quitar esse passivo, que passou a ser denominada de regime especial. A ideia inicial era de que o regime especial deveria estabelecer um prazo curto para regularização do pagamento dos precatórios em atraso, diante das críticas ao prazo de 15 (quinze) anos disposto no regime de exceção, para que, ao seu término, os entes públicos passassem a quitar seus precatórios no prazo de 18 (dezoito) a 30 (trinta) meses previsto na Constituição Federal. Assim sendo, em dezembro de 2016, a Emenda Constitucional nº 94/2016 ("EC nº 94/2016") determinou que precatórios com pagamento em atraso em 25 de março de 2015 ou que venceriam até 31 de dezembro de 2020 deveriam ser impreterivelmente quitados até 31 de dezembro de 2020.
No entanto, na sequência, em decorrência da crise econômica que agravou a situação de endividamento dos entes públicos, a Emenda Constitucional nº 99/2017 ("EC nº 99/2017") estendeu o referido prazo do regime especial até 31 de dezembro de 2024 para os Estados, Municípios e Distrito Federal.
Não bastasse isso, desde a promulgação da EC nº 99/2017, os Estados, Municípios e Distrito Federal já buscavam uma nova prorrogação do prazo de pagamento de seus precatórios, desta vez para 31 de dezembro de 2028, por meio da Projeto de Emenda Constitucional nº 95/2019 ("PEC nº 95/2019"), apresentada em 13 de junho de 2019 pelo Senador José Serra. A PEC nº 95/2019 já havia sido aprovada pelo Senado Federal e estava pendente de aprovação pela Câmara dos Deputados quando a previsão de prorrogação do prazo para pagamento de precatórios em atraso foi alterada de 31 de dezembro de 2028 para 31 de dezembro de 2029 e incorporada na PEC Emergencial que deu origem à promulgação da EC nº 101/2021.
Isso quer dizer que, apesar de todas as críticas à inconstitucionalidade do prazo de 15 (quinze) anos anteriormente previsto no regime de exceção, este veio a ser substituído pelo atual regime especial, em que os precatórios em atraso em 25 de março de 2015 poderão ser pagos até 31 de dezembro de 2029, ou seja, em até 14 (catorze) anos, restando evidente que se tentou sanar uma inconstitucionalidade com a instituição de outra inconstitucionalidade, pois continuamos sem expectativas concretas sobre a efetiva capacidade dos entes públicos de quitar seus estoques de precatórios.
Além disso, a EC nº 101/2021 também revogou a possibilidade de a União disponibilizar linha de crédito para pagamento de precatórios aos Estados, Municípios e Distrito Federal, introduzida na EC nº 99/2017. Isso porque a União nunca editou a regulamentação necessária para que essa linha de crédito viesse a ser implementada e disponibilizada, o que levou diversos Estados e Municípios a editar suas próprias leis para regulamentar a captação de financiamentos perante instituições financeiras públicas e privadas para pagamento de precatórios, tornando desnecessária a intervenção da União na disponibilização de recursos financiados aos Estados, Municípios e Distrito Federal para utilização no pagamento de precatórios em atraso.
Também está em tramitação perante o Senado Federal o Projeto de Decreto Legislativo nº 116/2020, de autoria do Senador Otto Alencar, que pretende suspender a expedição e pagamento de precatórios enquanto persistir a pandemia do Covid-19.
Com relação ao Poder Judiciário, o presidente do Supremo Tribunal Federal, o Ministro Luiz Fux, deferiu parcialmente o requerimento do Estado de São Paulo para autorizar a suspensão do plano de pagamentos de precatórios de 2020 determinado pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. A decisão foi tomada nos autos da Ação Cível Originária nº 3.458 ("ACO nº 3.458"). O Tribunal de Justiça de São Paulo havia suspendido, em março de 2020, por 180 (cento e oitenta) dias, o pagamento das parcelas de precatórios, em vista da excepcionalidade da pandemia. Ao final do prazo, o Estado de São Paulo apresentou planos de pagamento de precatórios dos exercícios de 2020 a 2024. O Tribunal de Justiça de São Paulo estabeleceu valores que deveriam ser quitados até o final do exercício de 2020 e fixou alíquota para os pagamentos de 2021. Na decisão proferida autos da ACO nº 3.458 em 30.12.2020, o presidente do Supremo Tribunal Federal autorizou a suspensão do plano de pagamentos de precatórios do exercício de 2020, assegurando ao Estado de São Paulo a "higidez fiscal necessária para o enfrentamento à pandemia, com foco no iminente projeto de imunização".
Outros Estados e Municípios também estão adotando medidas judiciais e requerendo liminares ao Poder Judiciário para suspender o pagamento de precatórios durante a pandemia do Covid-19 ou evitar o cumprimento de ordens de sequestro de verbas públicas para pagamento de precatórios em atraso já determinadas pelo Poder Judiciário, alegando a necessidade de assegurar recursos à área da saúde para enfrentamento da pandemia de Covid-19, como, por exemplo, o Município de Betim/MG.
Em conclusão, diante do aprofundamento da situação de endividamento dos entes públicos e do agravamento dos efeitos da pandemia de Covid-19, o cenário é de incerteza no que tange ao encerramento do regime especial instituído para pagamento de precatórios em atraso, diante das diversas alterações legislativas que já ocorreram e que ainda estão em andamento, bem como das decisões proferidas pelo Poder Judiciário determinando a suspensão do pagamento de precatórios durante a pandemia do Covid-19.
*Patricia Matsubara, Paula Mader Araujo e Helena Bianca Gandolfo são, respectivamente, sócia e advogadas do Machado Meyer Advogados