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Consequências nefastas da mudança da extensão da coisa julgada, sem modulação dos seus efeitos

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Por Luis Reis e Marcio Abbondanza Morad
Atualização:
Luis Reis e Marcio Abbondanza Morad. Foto: DIVULGAÇÃO

Conforme amplamente noticiado, em 8 de fevereiro o STF finalizou os julgamentos  emblemáticos dos Recursos Extraordinários nos 955.227/BA e  no 949.297/CE, sob o rito da repercussão geral, mediante os quais foram introduzidas importantes modificações na orientação da  Suprema Corte acerca da extensão da coisa julgada no âmbito tributário.

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Fixou-se a tese de que, nas relações de trato sucessivo, os julgamentos de mérito de recursos extraordinários sob o rito da repercussão geral e de ações diretas de (in)constitucionalidade interrompem, automaticamente,  os efeitos das decisões transitadas em julgado, respeitados os princípios da irretroatividade e das anterioridades (nonagesimal ou anual, a depender da natureza do tributo).

A perplexidade dos operadores do direito quanto à tese fixada não propriamente diz respeito ao mérito do julgamento (quebra automática da coisa julgada sem a necessidade de ação rescisória), o que, por si só, é questionável, mas, sim, acima de tudo, à ausência de modulação de efeitos desse inédito entendimento.

Isso porque, até o momento, não havia absolutamente nada no ordenamento jurídico, tampouco na jurisprudência, que impusesse ao contribuinte a inobservância da coisa julgada favorável quando o STF mudasse de entendimento nos julgamentos de recursos extraordinários com repercussão geral ou nas ações de controle concentrado quanto à constitucionalidade ou à inconstitucionalidade de uma norma.

Pelo contrário, havia, além do apego extremo ao instituto sagrado da coisa julgada, entendimento sedimentado do STJ (REsp nº 1.118.893/MG), em recurso repetitivo, permitindo, por exemplo, a continuidade da coisa julgada que declarou a inconstitucionalidade da exigência da CSLL com fundamento na Lei nº 7.689/88 mesmo depois do entendimento posteriormente modificado pelo STF na ADI 15/DF. Em outras palavras, entendia o STJ que o novo posicionamento do STF na ADI não abalaria a coisa julgada.

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Logo, a partir da lógica do próprio STF quando, por exemplo, na modulação de efeitos ocorrida no RE nº 574.706/PR, considerou o posicionamento antagônico do STJ para modular os efeitos da inconstitucionalidade da inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da COFINS como forma de prestígio à segurança jurídica, impunha-se a modulação nos REs nos 955.227/BA e RE 949.297/CE.

Agravando a situação, o STF, até o julgamento finalizado no dia 8 de fevereiro, entendia majoritariamente que essa mesma discussão (coisa julgada da CSLL) não poderia ser apreciada por aquela Corte por haver violação meramente indireta ou reflexa ao inciso XXXVI do artigo 5º da Constituição Federal (RE 473214 AgR e ARE 861473 AgR).

A partir disso, por coerência, o STF deveria ter aplicado a mesma lógica da modulação de efeitos do RE nº 669.196/DF, quando o Ministro Dias Toffoli, acompanhado à unanimidade (com exceção do Ministro Marco Aurélio), afirmou que "[...] diversas relações jurídicas que envolvem volume significativo de dinheiro haviam se estabilizado à luz da norma contestada nestes autos, a qual, contudo, foi declarada inconstitucional. De mais a mais [...] havia, no Supremo Tribunal Federal, até o reconhecimento da repercussão geral da matéria, precedentes indicando a natureza infraconstitucional da controvérsia. E isso gerou arcabouço jurisprudencial que permitia concluir pela higidez da norma hostilizada [...]."

No caso da matéria julgada nos REs nos 955.227/BA e 949.297/CE, portanto, havia repetitivo do STJ reconhecendo a inviolabilidade da coisa julgada, bem como jurisprudência do STF pela ausência de violação à Constituição Federal, de modo que o entendimento agora fixado pelo desfazimento automático da coisa julgada é inédito e, por isso, como forma de preservação da segurança jurídica e do interesse social - haja vista os prejuízos financeiros que a iniciativa privada assumirá -, impunha-se a modulação de efeitos.

Essa modulação teria como resultado prático que a coisa julgada se desfizesse como resultado da alteração da jurisprudência do STF em repercussão geral e em ações diretas somente depois dos citados julgamento dos REs nos 955.227/BA e 949.297/CE.

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E, dentro dessa lógica, ao menos duas possibilidades seriam possíveis. A primeira seria que somente as futuras mudanças de entendimento do STF em repercussão geral ou ações diretas teriam o condão de desfazer a coisa julgada, preservando, ainda que parcialmente, o arcabouço jurídico já consolidado, concedendo ao contribuinte a possibilidade de ao menos se planejar com o provisionamento dessas possíveis perdas, pois, repita-se, não havia nada no ordenamento jurídico ou na jurisprudência capaz de trazer desconfiança ao contribuinte quanto à certeza da coisa julgada.

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A segunda hipótese seria modular para que a tese fixada nos citados REs nos 955.227/BA e no 949.297/CE se aplicasse somente para fatos geradores posteriores a este julgamento, de maneira que somente estes estariam sujeitos ao entendimento posteriormente alterado pelo STF acerca da respectiva matéria tributária, não retroagindo. Nesse caso, dever-se-ia, inclusive, inibir a exigência de débitos de autos de infração já lavrados, ainda que somente para evitar a decadência.

Em conclusão, o resultado prático desse julgamento deveria valer de alguma forma somente para o futuro, em razão da sua absoluta quebra de paradigma, preservando-se as finanças do contribuinte brasileiro, como comumente faz o STF para preservar as finanças públicas.

Sobre isso, foram valiosas as considerações do Ministro Luiz Fux nos julgamentos em questão, que veementemente criticou a ausência de modulação de efeitos, citando, inclusive, a reputação do STF ao deixar de modular um tema que nunca havia sido apreciado, ainda mais em se tratando do instituto sagrado da coisa julgada, o que colocaria em risco o próprio Estado Democrático de Direito.

Edson Fachin também expressou severas críticas à ausência de modulação, citando, na referida sessão, o que chamou de "rescisória universal infinita retroativamente, gerando uma imensa insegurança jurídica".

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O Ministro Dias Toffoli, igualmente crítico, citou o efeito sistêmico do julgamento para a sociedade, acima de tudo considerando que o STF nunca havia apreciado o tema. Assim, para o referido Ministro, é somente com este julgamento, vinculante, que o contribuinte passou a estar ciente de que a sua coisa julgada seria desfeita automaticamente. O Ministro Lewandowski, da mesma forma, apontou que, na prática, estaria o STF a modular, hoje, os efeitos do julgamento da ADI 15/DF ocorrido há uma década e meia.

Desse modo, espera-se ao menos que o entendimento quanto à modulação de efeitos seja revisto em embargos de declaração, quando o STF precisará justificar o motivo pelo qual, nesse caso, não se posicionará da mesma forma como se posicionou, por exemplo, nos REs nº 574.706/PR enº 669.196/DF.

Passando aos efeitos práticos deste julgamento, caso mantido sem modulação de efeitos, imagina-se a situação em que dada operação societária de aquisição ocorreu sem a consideração desse risco bilionário, que, até então, era inimaginável. A partir de agora, diversas ações judiciais cíveis poderão ser ajuizadas, pois certamente nenhuma parte dessa relação jurídica irá assumir esse ônus com entusiasmo.

Por exemplo, aquele investidor que comprometeu parte de sua economia apostando na empresa tomando-se como base a tese até então pacificada quanto aos efeitos da coisa julgada se vê na eminência de perder capital à medida que a empresa investida terá que pagar um tributo relativo a períodos passados que julgava indevido. Assim, o resultado desse julgamento vai além do direito tributário, invadindo a área cível, contratual, societária, mercado de capitais, dentre outras.

Fica a dúvida, também, se a contagem do prazo da aplicação do princípio da anterioridade se dará a partir da publicação da ata do julgamento de mérito que fixar a nova tese desfavorável ao contribuinte, desfazendo a coisa julgada automaticamente, ou a partir do seu trânsito em julgado, quando a decisão em tese era (até então) imutável. Espera-se que esse ponto seja endereçado em embargos de declaração de forma plena, evitando-se novos contenciosos.

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Já se discute também se os julgamentos em recursos repetitivos - que não subiram até então ao STF por debatem matéria infraconstitucional - teriam aptidão para desfazer coisas julgadas formadas em favor do contribuinte, todavia, espera-se calorosa contraposição a este eventual posicionamento pelo fato de o STF, no novel julgamento, ter fixado tese somente para casos julgados em repercussão geral e ações diretas.

No mais, caso de fato prevaleça a não modulação de efeitos, espera-se o absoluto respeito da administração tributária ao prazo decadencial para a exigência dos tributos nessa nova sistemática. Espera-se reflexões contundentes sobre a prescrição em autos de infração lavrados, inclusive para prevenir a decadência (a depender do motivo para tanto), uma vez que, se o STF considerou a coisa julgada desfeita a partir do novo julgamento de mérito pelo STF em repercussão geral e ações diretas, foi neste momento que caiu a causa suspensiva da exigibilidade do crédito tributário e o débito tornou-se exigível.

Espera-se, igualmente, tratamento isonômico - e sem entraves - ao contribuinte que pretender recuperar tributos pagos indevidamente quando, diante de um julgamento desfavorável a si, o STF, depois, passou a entender inconstitucional a exação. Nesses casos, respeitada a prescrição quinquenal, terá o contribuinte direito a recuperar o indébito tributário com a devida atualização.

Ademais, contribuintes que ajuizaram ações para a não inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da COFINS depois do julgamento do mérito da matéria no STF em 15.03.2017, tendo obtido trânsito em julgado sem qualquer limitação temporal antes do julgamento dos Embargos de Declaração, em 13.05.2021 (que modulou os efeitos da tese fixada), também poderão ser impactados.

É que, nesses casos, a União busca o desfazimento da coisa julgada via rescisória pela aplicabilidade da modulação de efeitos ocorrida em 13.05.2021, tentando tirar do contribuinte o seu direito transitado em julgado de reaver os valores recolhidos nos cinco anos anteriores ao ajuizamento.

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Agora, com esse novo entendimento do STF, certamente buscarão o desfazimento automático da coisa julgada pela aplicabilidade da modulação dos efeitos definida em 13.05.2021, o que é questionável pelo fato de o julgamento ora em análise não ter mencionado o desfazimento da coisa julgada por modulações de efeitos posteriores, mas, em regra, somente pelos julgamentos de mérito.

Outras diversas teses julgadas recentemente pelo STF com alteração da jurisprudência sobre a matéria, como IPI na revenda, dedutibilidade da CSLL do IRPJ, COFINS das sociedades uniprofissionais, contribuição previdenciária sobre o terço constitucional de férias, dentre outras, serão impactadas.

Além do mais, mesmo sem modulação de efeitos, o desfazimento automático da coisa julgada, além de colocar em xeque o entendimento até então consolidado de que nem mesmo ação rescisória seria cabível pela mera alteração jurisprudencial, trará resultados trágicos aos controles contábeis das empresas e, assim, às suas demonstrações financeiras, pois, a partir de agora, as teses serão eternas, havendo sempre o iminente risco do desfazimento da coisa julgada.

Desse modo, a partir de agora, a segurança jurídica e a efetividade da coisa julgada dependerão do julgamento imprevisível da matéria em repercussão geral ou em ação direta de (in)constitucionalidade, sendo que, em havendo julgamento contrário à coisa julgada nessas duas hipóteses, a coisa julgada será automaticamente revogada sem a necessidade de ação rescisória.

Nesses casos, considerando o atual cenário - anterior à publicação do Acórdão e anterior à eventual oposição e acolhimento de Embargos de Declaração -, em existindo hoje coisa julgada favorável ao contribuinte, com o julgamento dos REs nos 955.227/BA e 949.297/CE, estão imediatamente cessados os efeitos da coisa julgada (conservadoramente a partir da publicação da ata do julgamento do mérito ou a partir do trânsito em julgado dos REs no 955.227/BA e  949.297/CE), podendo haver cobrança dos últimos cinco anos ou, em havendo discussão administrativa ou judicial, retroagindo ainda mais. Nessas situações, é ainda pouco claro se também se considerará as anterioridades a partir do novo entendimento no respectivo processo.

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Para o futuro, em havendo julgamento de repercussão geral ou ação direta de (in)constitucionalidade contrárias à coisa julgada, igualmente serão imediatamente cessados os efeitos da coisa julgada provavelmente a partir da publicação da ata de julgamento do mérito nas respectivas ações, com observância às anterioridades, a depender da natureza do tributo.

Por derradeiro, há que se indagar se os efeitos retroativos dos recentes julgados do STF, ao modificarem radicalmente a orientação jurisprudencial até então pacificada, farão com que o contribuinte tenha que recolher o tributo até então protegido pela coisa julgada com encargos moratórios, em especial, as multas, o que seria uma verdadeira aberração jurídica.

Portanto, espera-se que o STF module os efeitos da tese fixada nos REs no 955.227/BA e 949.297/CE com fundamento nas modulações que vêm sendo aplicadas (REs nº 574.706/PR e nº 669.196/DF), bem como que essa nova realidade a partir do apequenamento da coisa julgada não traga ainda maiores prejuízos para a imagem brasileira, já fortemente abalada pela ausência de segurança jurídica e previsibilidade tributária, resultando na fuga de capitas e investimentos.

*Luis Reis e Marcio Abbondanza Morad, sócios do escritório Reis, Varrichio e Carrer Sociedade de Advogados

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