
Nos últimos dias, com o avanço da pandemia da covid-19, tem se notado uma movimentação de diversos países no sentido de garantir a proteção do abastecimento interno de Produtos Individuais de Proteção (EPIs) e outros produtos essenciais ao combate do novo coronavírus, tais como ventiladores pulmonares.
A título de exemplo, nos Estados Unidos, o Presidente Donald Trump proibiu empresas americanas de exportarem EPIs cruciais para o combate à covid-19, para que os hospitais locais tenham equipamentos suficientes para o combate da pandemia. A medida foi fundamentada no "Defense Production Act" (Lei de Defesa da Produção), lei publicada em 1950 como resposta às necessidades da produção na época da Guerra da Coreia.
Documento
Defense Production ActA França, por sua vez, publicou recentemente o Decreto nº 2020-293, que estabelece as medidas gerais necessárias para enfrentar a epidemia da covid-19. Dentre as medidas previstas na norma, destaca-se a possibilidade de o Estado requisitar diversos produtos e serviços, como, por exemplo, máscaras e outros EPIs, matérias primas para fabricação de máscaras, aeronaves civis e funcionários necessários para seu funcionamento, estabelecimentos para armazenamento de EPIs, entre outros.
O Brasil também tem adotado medidas a fim de garantir a proteção do abastecimento interno de EPIs e outros produtos essenciais ao combate do novo coronavírus. Editada para estabelecer as regras ao enfrentamento da epidemia causada pela covid-19, a Lei nº 13.979/2020 atribui competência concorrente para que autoridades Federais, Estaduais e Municipais realizem requisições administrativas de bens e serviços. Em breve síntese, essa disposição legal, que tem fundamento na Constituição Federal e foi replicada em diversos decretos Estaduais e Municipais, formalmente autoriza as autoridades administrativas a requisitarem produtos e serviços utilizados no tratamento do novo coronavírus, sem que sejam necessárias a aceitação do particular e a prévia intervenção do poder judiciário, desde que seja garantido o pagamento posterior de indenização justa.
Conforme prevê o art. 3º, inc. VII e § 1º da Lei nº 13.979/2020, a requisição administrativa deveria ser utilizada na extensão e abrangência exata para atender à finalidade pretendida, i.e. a proteção da coletividade, limitada ao mínimo indispensável à promoção e à preservação da saúde pública, e determinada com base em "evidências científicas" e "em análise sobre as informações estratégicas em saúde". Além disso, por restringir direitos fundamentais de propriedade e de livre iniciativa, a requisição administrativa deveria ser compreendida como uma medida excepcional e adotada por meio de ato administrativo formal. Ainda, por ser uma atribuição de competência concorrente, há quem argua que as requisições administrativas, realizadas em razão da pandemia da covid-19, deveriam ser coordenadas pelo Ministério da Saúde.
Contudo, não é isto que tem sido verificado na prática. Têm sido frequentes os relatos de requisições administrativas realizadas sem critérios claros, desprovidas de formalidades, de forma desordenada e sem levar em conta a necessidade de outros entes da administração pública e da esfera privada. Tais requisições, que vêm causando enorme insegurança jurídica aos fornecedores e consumidores de EPIs e de outros produtos necessários ao combate do novo coronavírus, podem, potencialmente, comprometer o abastecimento de hospitais públicos e privados, colocando a coletividade em risco.
Como consequência dessas ações, tem-se verificado uma crescente judicialização da matéria. Por exemplo, em 31.3.2020 a Confederação Nacional de Saúde ("CNS") acionou o Supremo Tribunal Federal ("STF"), por meio da ADI 6362. Nessa ação, o CNS solicita que o STF determine, em sede liminar, (i) que todas as requisições administrativas realizadas sob a luz da Lei nº 13.979/2020 sejam submetidas ao prévio exame e autorização do Ministério da Saúde, (ii) a imediata suspensão da eficácia dos atos de requisição administrativa realizados por gestores de saúde estaduais ou municipais que não tenham sido submetidos ao prévio exame e autorização do Ministério da Saúde, e (iii) que, para serem tidas como constitucionais, as requisições administrativas sejam precedidas da prévia oitiva do requisitado, fundamentadas de forma explícita, e realizadas com proporcionalidade, especialmente para que não inviabilize os negócios da empresa requisitada e a prestação de serviço de saúde por parte de instituição que tenha previamente adquirido os mesmos bens. A ADI 6362 aguarda manifestação da Advocacia-Geral da União e da Procuradoria-Geral da República e, após, seguirá para julgamento.
Em que pese a falta de decisão dos processos que julgam as requisições administrativas realizadas sob a luz da Lei nº 13.979/2020, e de uma determinação no sentido de que o Ministério da Saúde deva realizar o prévio exame dessas medidas, parece claro que, quando desprovidas de critérios e formalidades, e sem levar em conta a necessidade de outros entes da administração pública e da esfera privada, as requisições administrativas poderão caracterizar abuso de poder e, como tal, ser consideradas inválidas.
De toda forma, espera-se que o iminente posicionamento do STF acerca do tema possa oferecer maior segurança jurídica ao tema, delimitando o instituto da requisição administrativa e oferecendo critérios claros para a sua aplicação em tempos de estado de calamidade.
*Rubens Granja, sócio do escritório Kestener, Granja & Vieira advogados; Tatiana Gualberto Kascher, advogada do escritório Kestener, Granja & Vieira advogados; Giovanna Pasquini Malfatti, advogada do escritório Kestener, Granja & Vieira advogados