A Lei dos Direitos Autorais (Lei 9.610/1998) chega aos 25 anos sob questionamentos. Quando foi concebida para regular os direitos do autor, entendido como uma pessoa física, a inteligência artificial estava circunscrita à pesquisa científica, ao desenvolvimento da informática e às aplicações industriais. Neste milênio é que a IA passou a ocupar um espaço cada vez maior na vida cotidiana dos seres humanos. Devem a propriedade intelectual e os direitos autorais serem atribuídos à máquina? Ou são de quem aciona a inteligência artificial para a produção de uma obra?
A questão estende-se também à responsabilidade civil relacionada à obra artística ou literária. A história recente mostra um imenso número de situações em que charges, instalações, músicas, pinturas, fotos e textos foram vetores de crimes contra a honra - injúria, calúnia e difamação. Para citar apenas um exemplo, lembremos o midiático caso das caricaturas de Maomé publicadas pela revista satírica francesa Charlie Hebdo. Consideradas ofensivas por setores do islamismo, as charges fomentaram mundo afora acalorados debates sobre o limite da liberdade de expressão.
Nem é preciso ir tão longe. Textos sobre a vida de pessoas famosas ou figuras públicas provocam recorrentemente o mesmo questionamento, ainda mais depois da queda da Lei de Imprensa, que trazia, junto com anacronismos que precisavam ser derrubados, boas soluções para dimensionar o direito de resposta dos ofendidos em crimes contra a honra. Soluções que podiam ter permanecido no ordenamento jurídico, mas que infelizmente se foram, tal qual o trigo descartado com o joio. Se a ausência completa de regras já jogava as questões envolvendo a imprensa num campo de incertezas, o uso maciço da IA trouxe complexidade ainda maior ao cenário. Quem deve ser responsabilizado por eventuais excessos cometidos em obras produzidas pela IA, sejam charges, poemas, textos, canções ou obras de natureza correlata?
O mundo jurídico não tem respostas prontas para tais questões. Parte dos juristas considera que somente quando há um ser humano por trás da criação artística, científica ou literária é que a autoria pode ser reconhecida. Assim, a proteção intelectual e o direito autoral não se aplicam às criações da IA.
Outro grupo entende que a propriedade intelectual é um estímulo para os desenvolvedores tecnológicos.
Entre os dois extremos colocam-se aqueles que avaliam que a IA é uma ferramenta que depende de um acionamento humano. Parte destes sustenta que, por isso, o conteúdo produzido deve ser protegido legalmente. Outra subcorrente avalia que deve haver uma distinção para os casos em que a criatividade humana sobressai, deixando claro o papel secundário da IA para a produção da obra.
É evidente a dificuldade de encaixar as produções cibernéticas no ordenamento jurídico consolidado no país - e mesmo no restante do mundo. Mesmo para as soluções que fogem dos extremos, a dificuldade se coloca pela subjetividade presente na avaliação dos casos.
Até que o assunto seja bem digerido e que a jurisprudência vá se consolidando a partir da análise de casos concretos, elementos presentes no Código Civil, especialmente ligados à previsibilidade contratual e à segurança jurídica, devem apoiar a solução de controvérsias. Para os produtores de conteúdo que empregam a IA é recomendável, sempre que possível, a mitigação de riscos por meios da celebração de contratos com terceiros, afinal sabe-se que a IA vai muito além dos dados de domínio público para estabelecer padrões utilizados em suas próprias criações.
Para resguardar desenvolvedores e operadores em sua responsabilidade objetiva, outra medida prudente é a contratação de um seguro com cobertura específica para eventuais violações cometidas pela IA. Aos operadores do direito cabe acompanhar atentamente as mudanças tecnológicas e debater a adequação do ordenamento jurídico às novas realidades. É, sem dúvida, um campo fértil tanto para o estudo quanto para a aplicação do direito.
*Alan Bousso é advogado e mestre em Direito pela PUC-SP