
O criminalista Leonardo Sica, presidente da seccional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP), é contrário à decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que ampliou o alcance do foro privilegiado e expandiu a competência da Corte para julgar autoridades e políticos. Para o presidente da OAB de São Paulo, a mudança teve como motivação a “manutenção de poder” do tribunal.
“Um tribunal que julga todos os políticos é um tribunal que acaba se politizando. Se o Supremo reclama do excesso de processos, com razão, mas toma uma decisão que vai aumentar o número de processos, há de haver um interesse próprio nisso. Eu acho que é um interesse de manutenção de poder”, afirma em entrevista ao Estadão.
É a segunda mudança de posicionamento da Corte sobre o tema. Em 2018, o STF restringiu o foro por prerrogativa de função. A decisão foi tomada para baixar o volume de ações criminais após o Mensalão. Desde então, inquéritos e processos criminais envolvendo autoridades como deputados e senadores só precisavam começar e terminar no STF se tivessem relação com o exercício do mandato. Agora, o tribunal recua e define que, quando se tratar de crimes funcionais, o foro deve ser mantido, mesmo após a saída do cargo.
“O STF vai julgar parlamentares depois do mandato, então isso pode prolongar a competência por anos. Imagina um parlamentar que tem um processo no último ano do mandato dele. Aí ele termina o mandato e o Supremo vai ficar com aquele processo por quatro, cinco anos”, critica o presidente da OAB-SP.
O advogado afirma ainda que a ampliação do foro prejudica o direito de defesa na medida em que os políticos não têm uma instância superior ao STF para recorrer de suas decisões. Para o criminalista, as instâncias inferiores do Judiciário dispõem de estrutura para processar a classe política. “O Supremo Tribunal Federal não é o único tribunal que acerta no País.”

Leonardo Sica defende que, “em uma democracia ideal”, as regras sobre o alcance do foro privilegiado deveriam ser definidas por lei e não por jurisprudência ou por regras assentadas no regimento interno do STF.
O escopo do foro privilegiado no Brasil é amplo em termos comparativos, sobretudo pela lista de autoridades que têm direito a ele – de políticos a embaixadores e magistrados de tribunais superiores. Países como Japão, Argentina e Estados Unidos não preveem um foro específico em função do cargo público, embora concedam imunidade ao presidente. Em outros, como na França, a prerrogativa se estende apenas ao chefe do Executivo e aos ministros de Estado.
O presidente da OAB de São Paulo avalia que a ampliação do foro privilegiado distorce o funcionamento do STF porque as investigações e ações criminais congestionam a pauta de julgamentos e dividem espaço com controvérsias constitucionais. “Por falta de autocontenção, o Supremo está se expondo politicamente.”
Leia a entrevista completa com o presidente da OAB de São Paulo:
Por que o Sr é contra a decisão do STF?
Eu acho que não deveria ampliar, deveria reduzir. Então, como estava, eu já era contra. O alargamento do foro privilegiado transformou o Supremo Tribunal Federal em uma corte criminal. E isso faz mal ao tribunal. O próprio ministro Barroso sempre fala isso. O tribunal não consegue se debruçar sobre as questões constitucionais. E, se a gente quer melhorar o Supremo Tribunal Federal, a gente precisa enfrentar essa questão de devolver a ele o papel de Suprema Corte constitucional. Então, eu acho que isso é uma distorção. Não tem paralelo no mundo uma corte suprema que julga criminalmente tanta gente. Em segundo lugar, você tem uma questão séria, digamos assim, de princípio da igualdade. Você privilegia muitas pessoas com o foro por prerrogativa de função, quando existe toda uma estrutura judiciária. Por exemplo, quando o ministro Gilmar Mendes fala: ‘Se eu tirar o foro de prerrogativa de função, os deputados não vão ser julgados’. Mas é claro que vão ser julgados. Vão ser julgados pelo tribunal do seu Estado, a gente tem que confiar que tem uma estrutura judiciária. Não é que não serão julgados, vão ser julgados em outro lugar. E, além da distorção conceitual, tem uma questão prática: congestiona a pauta. Os ministros vivem reclamando do excesso de processos e eles acabaram tomando uma decisão para aumentar o número de processos, então acho isso um contrassenso.
Enxerga alguma motivação estratégia na decisão?
Um tribunal que julga todos os políticos é um tribunal que acaba se politizando. Se o Supremo reclama do excesso de processos, com razão, mas toma uma decisão que vai aumentar o número de processos, há de haver um interesse próprio nisso. Eu acho que é um interesse de manutenção de poder. Falta um mecanismo de autocontenção no Supremo. Meu receio é que algum dia o Parlamento resolva impor regras de contenção ao Supremo, o que também é ruim. Por falta de autocontenção, o Supremo está se expondo politicamente.
No passado, o foro por prerrogativa de função foi considerado um privilégio circunscrito a certas autoridades. Hoje é o contrário. Vemos autoridades abrindo mão da prerrogativa para serem julgadas na primeira instância. As críticas não são ocasionais, relacionadas à maneira como o STF julga?
Da minha parte não. Acho que, quando existia essa percepção, é porque o tribunal julgava pouco, então a gente não sabia como o tribunal julgava a matéria penal, e talvez a gente não tivesse o alcance dos problemas.
Considera que há prejuízo às defesas?
Tem um prejuízo à defesa enorme, porque você julga a pessoa sem duplo grau de jurisdição. Julgar pessoas criminalmente sem duplo grau de jurisdição tem que ser uma exceção no sistema. A gente teria que reservar o foro privilegiado no Supremo para poucas autoridades, o Presidente da República, ministros de Estado e ministros de Cortes Superiores. Veja, se você pegar todos os deputados e devolver o julgamento de cada deputado pro seu Estado, seja para o Tribunal Regional Federal ou para o Tribunal de Justiça do Estado, a gente vai dispersar essa concentração. Isso é muito mais democrático. A gente vai permitir julgamentos com duplo grau e a gente vai confiar que o Supremo Tribunal Federal não é o único tribunal que acerta no País. O STF vai julgar parlamentares depois do mandato, então isso pode prolongar a competência por anos. Imagina um parlamentar que tem um processo no último ano do mandato dele. Aí ele termina o mandato e o Supremo vai ficar com aquele processo por quatro, cinco anos.
É a segunda vez que o STF muda de posição sobre o foro privilegiado em sete anos. Parece um intervalo adequado?
É um entendimento recém-instituído. Para começar, em uma democracia ideal essa regra seria definida em lei. Um tribunal não deveria decidir isso em regimento interno ou em jurisprudência. A gente vem vivendo de remendos, especialmente nessa matéria do foro por prerrogativa de função.