Sancionada em 30 de dezembro de 2021, a Lei 14.286/21 (Nova Lei Cambial) representa um marco para os negócios em moeda estrangeira regidos sob lei brasileira, inclusive para o financiamento de projetos de infraestrutura situados no país. O dispositivo moderniza a legislação cambial, que se tornou anacrônica diante das práticas comerciais atuais, e consolida um ambiente regulatório mais próximo do tratamento dado à matéria segundo os padrões internacionais. A lei entrará em vigor em 30 de dezembro de 2022, cabendo ao Banco Central do Brasil (BCB) e ao Conselho Monetário Nacional (CMN) a edição de normas infralegais subsequentes, a fim de disciplinar alguns dos temas abordados.
Entre as inovações trazidas está a facilitação da circulação do real no exterior. Nos termos do art. 6º, fica instituída a possibilidade de investimento de recursos captados no Brasil em operações externas por meio da utilização de contas, em reais, mantidas nos bancos por instituições domiciliadas ou com sede no exterior e sujeitas à regulação e à supervisão financeira de seu país de origem. Como efeito possível, tem-se o aumento da circulação do real nos mercados internacionais, mitigando as limitações existentes para a aplicação, no exterior, de recursos captados no Brasil.
Na perspectiva dos projetos de infraestrutura, evidenciam-se as mudanças sistematizadas no art. 13, que trata do pagamento em moeda estrangeira de obrigações exequíveis no território nacional. De início, é importante notar que a Lei 14.286/21 acarreta, entre outros efeitos, a revogação do Decreto-Lei 857/69, o qual se encontra em vigor até superada a vacatio legis da nova regulação. A redação do art. 13, por sua vez, reitera alguns dispositivos que já existiam sob o referido Decreto-Lei, mas, principalmente, alicerça um novo ambiente de negócios, cujos contornos práticos já vinham se estabelecendo a partir das interações de mercado.
Assim, o inciso VII, do art. 13, introduz a possibilidade expressa de pagamento, em moeda estrangeira, de obrigações exequíveis no território nacional em contratos celebrados entre exportadores e concessionárias, permissionárias, autorizatárias ou arrendatárias nos setores de infraestrutura. Nesses termos, permite-se que os negócios jurídicos entre exportadores e titulares de projetos de infraestrutura sejam indexados diretamente em moeda estrangeira.
As análises correntes da matéria não têm dado conta da amplitude do permissivo legal. Com efeito, nota-se um entusiasmo maior no setor de energia, diante da possibilidade, agora expressamente permitida em lei, de que os contratos de compra e venda de energia (Power Purchase Agreements - PPAs) sejam indexados em moedas como o dólar e o euro. No caso das geradoras de energia elétrica, financiadas em moeda estrangeira, inclusive para fins de aquisição de equipamentos importados, seu serviço da dívida está majoritariamente atrelado ao dólar, de modo que a celebração de PPAs dolarizados permitirá um efeito colateral imediato representado pelas receitas lastreadas em indexador equivalente.
Nada obstante, a redação da lei foi bem mais abrangente, pois outros projetos de infraestrutura poderão ser igualmente beneficiados com as novas perspectivas. Os contratos de transporte, por exemplo, também poderão ser celebrados em moeda estrangeira. Considerando-se as práticas usuais de mercado, que insertam nesses arranjos contratuais cláusulas de take or pay, a possibilidade de um lastro de receitas em moeda estrangeira facilitará a constituição de garantias para os financiamentos tomados pelo mesmo indexador. Em saneamento básico, espera-se que os projetos associados, voltados a atender às necessidades de grandes consumidores, que geralmente são os próprios exportadores, originem contratos em moeda estrangeira. Isso permitirá que os operadores dos sistemas de água e esgotamento sanitário possam diversificar seu portfólio de dívida, para incluir financiamentos indexados ou mesmo operações mais complexas de swap, que venham a mitigar riscos cambiais na importação de equipamentos e tecnologias de tratamento de efluentes.
As mudanças introduzidas pela Nova Lei Cambial são notáveis, portanto, uma vez que os contratos sob a nova disciplina têm relação direta com os investimentos em infraestrutura e capturam com precisão o elo desse setor com a economia de exportação. Na impossibilidade de celebração de contratos com tais características, os titulares de projetos de infraestrutura não apenas têm seu acesso ao mercado internacional de crédito dificultado, como também se expõem a maiores riscos atrelados à variação cambial, quando insumos indispensáveis precisam ser importados. Sob a Nova Lei, garante-se o acesso a novas fontes de financiamento em nível global, permitindo operações casadas de receitas e despesas sob o mesmo indexador cambial, quando presentes usuários qualificados como exportadores.
Esse efeito de mitigação de risco cambial nos projetos de infraestrutura foi contemplado pelo inciso VIII do mesmo art. 13, que permite, adicionalmente, o pagamento em moeda estrangeira "nas situações previstas na regulamentação editada pelo Conselho Monetário Nacional, quando a estipulação em moeda estrangeira puder mitigar o risco cambial ou ampliar a eficiência do negócio".
Por isso, a Nova Lei Cambial torna mais flexível o traçado regulatório referente às operações cambiais, ao "deslegislar" as oportunidades de indexação cambial dos negócios jurídicos regidos por lei brasileira e ao remodelar as competências ao BCB e ao CMN, o que possibilitará maior agilidade na disposição de normas ajustadas à dinâmica de mercado. Ao mesmo tempo, a nova lei já contém parâmetros objetivos que, em princípio, prescindirão de regulação das autoridades monetárias no que se refere a algumas oportunidades em infraestrutura, onde se esperam verdadeiras transformações de modelagem contratual, não apenas em áreas mais consolidadas, como energia, mas também em temas ainda incipientes de ferrovias, portos e saneamento básico.
*Rafael Vanzella, Debora Leal e Gabriel Nagle de Oliveira, sócio e advogados da área de infraestrutura do Machado Meyer Advogados
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