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Opinião | Justiça virtual: uma visão crítica

O acesso à justiça como forma de exercício da cidadania deve se dar pela ruptura de obstáculos que impedem a igualdade de todos, mas, pelas razões aqui expostas, a audiência virtual vai figurar como mais um entrave para a perfeita realização da justiça

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convidado
Por Valderez Deusdedit Abbud

O ano de 2020 surpreendeu o planeta com o surgimento da COVID-19, causada pelo coronavírus SARS-CoV-2, atingindo os humanos com uma infecção respiratória aguda grave, que levou à morte milhões de pessoas. A elevadíssima transmissibilidade do vírus e, ainda, a ausência de uma vacina que pudesse controlar sua disseminação, geraram, em 11 de março de 2020, a declaração de Pandemia pela Organização Mundial de Saúde, impondo protocolo de tratamento, com destaque para o uso de máscaras e isolamento social que mudou a vida do mundo. Sim, tida como uma das medidas mais importantes e eficazes para reduzir o avanço da pandemia da covid-19, as pessoas se isolaram em suas casas, os serviços não essenciais foram paralisados e, para se adaptar à essa nova e sombria realidade, implantou-se o sistema de trabalho remoto, acolhido, entre outros, pelas instituições de educação e pelo sistema de justiça, trazendo imensos benefícios num tempo em que os seres humanos estavam completamente submetidos à transmissão do vírus e à certeza da morte, enquanto a ciência procurava insistentemente a solução, pela vacina, de controle desse vírus. Com esse cenário, visando à retomada dos serviços, ainda que de forma precária, foram reiniciados os trabalhos judiciais, com o regular andamento dos processos, inclusive com designação de audiência e, consequentemente, a solução dos conflitos, por meio remoto, à exceção do Tribunal do Júri, que seguiu fazendo os julgamentos presenciais em plenário. Era melhor forma de atuação? Evidentemente que não, mas era a única possível naquele tempo.

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Após incansável trabalho dos cientistas, já no final de 2020, a vacina foi criada e, no Brasil, sua aplicação iniciou-se no primeiro trimestre de 2021 e, no final desse mesmo ano, pode-se afirmar que a vida foi retomando à normalidade para, finalmente, em maio de 2023, a Organização Mundial de Saúde declarar o fim da pandemia.

Mas, embora a vida tenha retomado a absoluta normalidade, alguns costumes criados pela emergência daquela situação não só permaneceram, como, também, se consolidaram, destacando-se o sistema virtual nos assuntos da justiça. Com fundamento nos mais variados argumentos, como, por exemplo, celeridade processual; preferência dos jurisdicionados; diminuição de custos; desnecessidade de deslocamento de presos e utilização de polícia para escolta, enfim, as mais inventivas teses surgiram para justificar essa modalidade cômoda de trabalho, de tal modo que, hoje, os fóruns mais parecem prédios decadentes e abandonados.

Certo, não se ignora que as razões invocadas têm alguma pertinência, nem tampouco que as inovações tecnológicas são instrumentos importantíssimos para auxiliar no complexo trabalho judicial, porém não são suficientes para jogar por ter terra princípios informativos da Constituição da República e dos Códigos Processuais. Não se justifica, sob qualquer fundamento, que se realize audiência criminal por meio virtual.

Como se sabe, ainda vigora no processo penal o princípio da verdade real que, em outras palavras, significa que o julgador deve se aproximar o máximo possível da verdade sobre os fatos colocados em julgamento. Para tanto, foram criados alguns regramentos visando à efetividade do processo, que no ambiente virtual são completamente desprezados. Para percebê-lo, basta observar o que diz o art. 210, caput e parágrafo único do Código de Processo Penal: “As testemunhas serão inquiridas cada uma de per si, de modo que umas não saibam nem ouçam os depoimentos das outras, devendo o juiz adverti-las das penas cominadas ao falso testemunho” Parágrafo único. “Antes do início da audiência e durante a sua realização, serão reservados espaços separados para a garantia da incomunicabilidade das testemunhas”.

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Ora, a leitura desse artigo permite, de pronto, a exata compreensão da incompatibilidade do cumprimento desse dispositivo em audiência virtual. Quem garante que, no sistema virtual, as testemunhas não estejam num mesmo ambiente e cada uma ouça o depoimento da outra? Quem garante, também, que a testemunha não esteja sendo instruída por uma das partes por meio de cartazes que não são captados pelas imagens? E como impedir de “cair a rede” quando a testemunha estiver dizendo algo contrário ao interesse de uma das partes? E nos processos de violência contra a mulher, quem pode assegurar que a vítima não esteja depondo, sob ameaça, na presença de seu algoz, sem a proteção que a audiência presencial lhe daria? Além disso, é muito mais fácil faltar com a verdade olhando para uma tela do que no ambiente solene de audiência, na presença do (a) juiz (a), promotor (a) e advogado (a). E como fazer reconhecimento de réus com a péssima resolução das imagens disponíveis para esses atos? Não bastasse, o princípio da publicidade dos atos processuais, tão caro à nossa tradição jurídica, previsto nos arts. 5º, LX e 93, IX, da Constituição da República, e no art. 792, do Código de Processo Penal, é solenemente ignorado em nome de circunstâncias de menor importância e de alguma comodidade. Não são raros casos em que testemunhas prestam depoimento dirigindo veículos pela via pública, ou que ré esteja fazendo as unhas durante a audiência e testemunhas descansando no leito enquanto participa desta estafante tarefa. Neste contexto, não há como garantir a eficácia do sistema criminal, o prestígio da justiça e, principalmente, a tranquilidade de um julgamento justo.

O certo é que, hoje, as disposições penais não passam de um amontoado de leis, que não são cumpridas, surgindo daí um risco seríssimo para a coerência do sistema. É, aliás, intuitivo que condutas produzidas em época de exceção e que resultam de princípios nem sempre coincidentes, sem dúvida, provocam frequentes injustiças. E para a solução destas, tem faltado diretrizes consensuais. Ora, na vida dos povos como das pessoas quem segue o ritmo do acaso renuncia à condução coerente do próprio destino.

Sem desprezar o avanço trazido pelas inovações tecnológicas, parece inarredável que os Conselhos Nacionais – de Justiça e do Ministério Público – revejam essas regras que tanto prejuízo trouxe ao sistema de justiça, cuja finalidade não se restringe à celeridade processual, mas, antes de tudo, deve ter como escopo a promoção da justiça, com a observância da unidade da Constituição e da sua ordem de valores, para a determinação, no caso concreto, da relação de preferência entre os bens em conflito.

Em suma: o acesso à justiça como forma de exercício da cidadania deve se dar pela ruptura de obstáculos que impedem a igualdade de todos, mas, pelas razões aqui expostas, a audiência virtual vai figurar como mais um entrave para a perfeita realização da justiça.

Este texto reflete a opinião do(a) autor(a). Esta série é uma parceria entre o blog do Fausto Macedo e o Movimento do Ministério Público Democrático (MPD). Os artigos têm publicação periódica

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Procuradora de Justiça do Ministério Público de São Paulo. Foto: Silvana Garzaro/Estadão
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