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Opinião | Legião é meu nome

É um cenário preocupante quando recrudescem movimentos extremados, rapidamente propagados para o terreno fértil no qual medram os preconceitos, os ressentimentos, a ira e o ódio

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convidado
Por José Renato Nalini

Tragédias como o Holocausto não poderiam acontecer novamente. O “Nunca Mais” foi constantemente repetido na recente celebração dos oitenta anos de libertação de Auschwitz pelas forças aliadas. A barbárie é indescritível. Entretanto, aconteceu na civilizada Alemanha, terra de Goethe, de Kant, de Beethoven e muitos outros iluminados filósofos e de consolidada cultura biodiversa.

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Um texto de Luis S. Kausz, “O ponto final de um sonho iluminista”, impressiona pela sua conclusão. Ele tem razão, ao mencionar alguns livros que relatam o que se passou no campo de extermínio e o que ocorre atualmente, com o fanatismo contaminante.

Há mais do que semelhanças “entre o aparato burocrático que tornou Auschwitz possível e outros aparatos burocráticos que governavam e continuam a governar as sociedades modernas, nos quais o indivíduo abre mão do próprio discernimento, da própria ética e do próprio juízo para se submeter a um sistema de regras alheio, que o pune e o recompensa na medida em que as regras são desobedecidas ou cumpridas, e que se torna um substituto frequentemente cômodo para a necessidade de refletir antes de agir”.

É fácil declinar de pensar, quando o cardápio da intolerância é ofertado e intensificado nas redes sociais. Pois “nesses grandes aparatos burocráticos, a responsabilidade sobre os atos supostamente deixa de ser de quem os pratica e é transferida àquelas nebulosas instâncias superiores das quais provêm as ordens. E, como se sabe, ordens são ordens”. Não aprendemos, desde crianças, que “ordem é para ser cumprida, não discutida”?

O drama contemporâneo é que os algoritmos se encarregam de municiar as cabeças fracas de “verdades” construídas ao sabor dos interesses, para que a intransigência continue a ser a regra. Regra absoluta e inquestionável. Hostilizar quem pensa diferente é o “novo normal”, com o desaparecimento da tolerância, do respeito pela opinião alheia, da arte do diálogo.

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É um cenário preocupante quando recrudescem movimentos extremados, rapidamente propagados para o terreno fértil no qual medram os preconceitos, os ressentimentos, a ira e o ódio. As redes sociais, que os ingênuos otimistas acreditavam pudesse reinstaurar a Democracia Direta, diante da facilidade de captar a opinião de cada indivíduo mediante um simples “clique”, está servindo para solidificar um contexto de radicalidade inteiramente irracional.

Quando se ouve a tendência de consenso a respeito das minorias, do tratamento a ser conferido ao infrator, o menosprezo à preocupação ecológica, é de se indagar se o nefasto retorno a iniciativas que deveriam ser definitivamente banidas da História está tão longe de se repetir.

Um sintoma que deveria motivar atitudes cidadãs é o do incremento ao uso de armas letais. Sob o pálio da insegurança, viceja o medo. Medo real, muitas vezes, mas imaginário tantas outras. O inimigo está em cada esquina. Por isso, é preciso armar “as pessoas de bem”. Como observa Muniz Sodré, em “Identidades mortas a caminho”, a “solução fantasiosa para a ameaça é sempre o emprego de armas, cada vez mais criativas e poderosas... Arma virou agora fonte de identidade. No Natal, pais deram pistolas verdadeiras de presente a crianças de seis anos”.

Quem se arma, alega que não quer morrer. Só que “esse fascínio atemorizado pela morte decorre de uma alergia à vida, por um mal-estar civilizatório insuperável, já que a prosperidade predatória é outra face da morte do planeta”.

Sim. Impregnados de ressentimento, de ódio crescente em relação a figuras que transformamos em desafetos, mesmo sem nunca termos tido oportunidade de conviver com elas, vamos descuidando do nosso único habitat, o planeta Terra, que em vários espaços já agoniza. Essa agonia ecológica leva consigo para a morte real, milhões de pessoas que já estão sem água, sofrem o flagelo da fome, são obrigadas a deixar suas Pátrias para se converterem na miserável caravana de refugiados climáticos.

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Os insensíveis são a maioria. Quem não se comove com a situação, deveria se lembrar da passagem evangélica em que o Cristo, ao expulsar o demônio que tomara um ser humano, perguntou ao diabo o seu nome. E obteve como resposta: “Legião é meu nome, porque somos muitos...”.

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Foto do autor José Renato Nalini
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José Renato Nalini
Reitor da Uniregistral, docente da pós-graduação da Uninove e secretário executivo das Mudanças Climáticas de São Paulo. Foto: Werther Santana/Estadão
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Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Estadão.

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