Tratava-se, pois, do reconhecimento pelo constituinte, também partilhado pela OEA, de que a realização plena e efetiva do acesso à justiça só é possível se garantida a independência das Defensorias Públicas dos Estados e da União para a atuação livre da influência dos poderes políticos constituídos, sobretudo o Executivo, já que, inelutavelmente, eles têm de ser demandados, o que significa, em grande medida, responder pela sonegação histórica de direitos econômicos, sociais e culturais e pelo desvelamento da violação dos mais comezinhos direitos civis e políticos titularizados pelo povo.
Evidentemente, combater a tortura constatada em visitas periódicas a presídios e unidades de internação de adolescentes, exercer a defesa intransigente de réus pobres em processos criminais, resguardar a dignidade da população em situação de rua, lutar contra a homofobia e a discriminação, acolher as mulheres vítimas de violência, resgatar direitos de quilombolas, buscar o acesso à educação, à saúde, à terra, à água e à moradia, enfim, atrapalha a governabilidade e incomoda muita gente ao desnudar relações de poder que naturalizam e perpetuam injustiças históricas.
Não à toa, nem bem o texto constitucional ganhou vida na atuação dos defensores públicos, com reflexos na tutela individual e coletiva dos direitos dos hipossuficientes, ataques à instituição passaram a pulular, seja em nível federal, com a ação direta de inconstitucionalidade n. 5296 que põe em risco a autonomia da Defensoria Pública da União, seja no plano dos Estados, como no caso de São Paulo, capitaneados por diversas ações do Procurador Geral do Estado.
Em tempos em que se invoca cotidianamente o ideal republicano para garantir autonomia aos poderes investigativos no combate à corrupção, soa anacrônica e anti-republicana qualquer tentativa de subjugar as Defensorias Públicas.
Se o Ministério Público, instituição responsável pela persecução penal, possui autonomia para cumprir suas atribuições, a ausência de autonomia à Defensoria Pública desequilibraria ainda mais o jogo processual e enfraqueceria o direito de defesa, fundamental em sociedades democráticas. Na mitologia grega, Prometeu, símbolo do humanismo primeiro, foi acorrentado pelos deuses num rochedo do Cáucaso para que um abutre comesse de maneira intermitente seu fígado, que se regeneraria antes de cada novo suplício, porque ousou dar o fogo aos homens, e, com isso, a possibilidade de se emanciparem com as técnicas e as artes.
A Defensoria Pública é uma instituição prometeica, digna da estirpe de Prometeu. Através dela, direitos fundamentais são garantidos aos excluídos, propiciando-lhes condições mínimas para uma vida digna. Por essas razões, não permitamos que ela também seja punida como o herói revoltado e tenha de retornar aos grilhões, até porque, como ensina Albert Camus, "o herói acorrentado, mesmo sob o raio e o trovão divinos, mantém inabalável sua fé no homem; (...) ele é mais duro que sua rocha, mais paciente que seu abutre". Para perseguir a justiça através da promoção de direitos é preciso liberdade e liberdade não se exerce sem autonomia. A autonomia da Defensoria Pública é essencial para que se possa semear novos valores no sistema de justiça, frutificar mais direitos e colher um pouco de futuro mais civilizado a que todos esperamos.
*Defensor Público do Estado de São Paulo. Doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP. Mestre em Direito pela UNESP.