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Juiz suspende ações em série: ‘Litigância predatória é um carcinoma que corrói o sistema de Justiça’

Em meio a um suposto esquema envolvendo grupo de advogadas e advogados com falsificação de documentos e captação indevida de clientes para fraudes com empréstimos consignados, juiz Sales Leite, da 2.ª Vara Cível de Caxias, interior do Maranhão, ordenou a suspensão de centenas de processos movidos contra instituições financeiras; ‘conluio, artimanhas e fraudes’

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Foto do author Fausto Macedo
Foto do author Rayssa Motta
Atualização:

O juiz Jorge Antônio Sales Leite, da 2.ª Vara Cível de Caxias, no interior do Maranhão, ordenou a suspensão de centenas de processos relativos a empréstimos consignados após identificar indícios de litigância predatória supostamente envolvendo um grupo de advogados e advogadas. Em sua decisão, Sales Leite apontou irregularidades como falsificação de documentos, captação indevida de clientela e seu abandono por parte dos causídicos após o levantamento de valores.

Caxias, a 360 quilômetros da capital São Luís, é a quinta mais populosa cidade do Maranhão, com cerca de 160 mil habitantes.

Caxias, no Maranhão; juiz apontou irregularidades como falsificação de documentos e captação indevida de clientela Foto: Wilson Take/Prefeitura de Caxias

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A litigância abusiva inclui uma série de condutas consideradas inadequadas, como ações temerárias, artificiais, procrastinatórias ou fraudulentas. Em 2020, o custo relacionado a apenas dois tipos de demandas no âmbito do consumidor foi estimado em R$ 10,7 bilhões.

“Em linhas gerais, é possível então concluir que a prática da litigância predatória é um carcinoma que corrói todo o sistema de Justiça, violador da boa-fé objetiva”, adverte Sales Leite.

A litigância predatória acarreta aumento dos custos processuais e dificulta o cumprimento da Meta Nacional 1, que visa julgar mais processos do que os que são distribuídos.

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Na prática, ela ocorre quando advogados ou partes ajuízam grande volume de ações sem fundamento legítimo, buscando vantagens indevidas.

As demandas que despertaram a suspeita do magistrado de Caxias alegavam, em geral, irregularidades em contratos de empréstimos consignados, como cobranças indevidas por parte de três bancos e inclusão incorreta de consumidores em cadastros de inadimplentes.

A Justiça, porém, identificou que muitas dessas ações apresentavam indícios de fraude, com uso de procurações falsas e a falta de ciência dos supostos clientes sobre os processos movidos em seus nomes.

A decisão de Sales Leite tem como base a Recomendação 159/2024 do Conselho Nacional de Justiça, que orienta magistrados a adotarem medidas contra abusos processuais.

Além de decretar o sobrestamento dos processos patrocinados por três advogadas de um mesmo escritório e de uma advogada com OAB de Pernambuco, o juiz mandou oficiar a Ordem dos Advogados do Brasil, o Ministério Público e a Polícia para investigação de possíveis infrações disciplinares e crimes como falsidade documental e estelionato.

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O juiz também estabeleceu cautelas na liberação de valores para conter a execução de fraudes e eventuais prejuízos aos consumidores. Ao mandar notificar a OAB, Sales Leite destacou ‘possível violação ao Estatuto da Advocacia no que se refere à captação indevida de clientela, bem como de infração ao artigo 38 do Código de Ética e Disciplina da OAB, quanto à pactuação de honorários advocatícios em percentuais exorbitantes’.

O magistrado elencou causas referentes a três instituições financeiras ao oficiar ao Ministério Público Estadual para mobilização do Gaeco, braço da Promotoria que combate crime organizado. Sales Leite quer apuração sobre ‘eventual crime de associação criminosa, estelionato, falsidade e outros crimes’.

A investigação poderá se estender a bancas de advocacia situadas fora do Maranhão ‘para análise da atuação de advogados de outros Estados de forma repetida e direcionada para um mesmo tipo de causa’.

Na Comarca de Caxias, segundo destacou o juiz Sales Leite, a distribuição de processos das três Varas Cíveis no ano de 2023 atingiu ‘índices alarmantes’ de exatos 14.439 mil processos distribuídos. Desse volume de ações, mais de 80% guardam fortes indícios de ‘demandas predatórias’.

“Dados esses que mostram à primeira vista que é impossível dar conta dessa avalanche de ações, mesmo que triplicássemos nossa capacidade de trabalho”, ressalta o magistrado.

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O espantoso acervo de processos pressiona a Meta 1 do Conselho Nacional de Justiça, que determina aos magistrados julgarem mais ações que o número de processos que ingressam no ano. “O Judiciário fica quase que, exclusivamente, voltado para essas demandas que no fundo são provenientes de artimanhas e fraudes”, alerta Sales Leite. “Os dados mostram essa caótica realidade”, escreveu o magistrado.

“Percebe-se que, geralmente, são advogados de fora do Maranhão que fazem a captação de clientela em massa, a qual é uma prática irregular, proibida pelo Estatuto da Advocacia. E aí nos deparamos também com o cometimento de crimes como falsificação de documentos, falsificação de assinaturas de pessoas que nem sabiam que a ação estava tramitando, ou no caso de procurações falsas e de uso de CPF de pessoas sem estas terem conhecimento da demanda”, pontua.

Ele aponta, ainda, em sua decisão, para o que chama de ‘prática processual corriqueira, que é quando a parte contesta a ação e apresenta o contrato e a prova que o débito existe, o advogado pede desistência ou sai do processo e a ação acaba sendo abandonada’. Sales Leite assinala que a Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil em Caxias tem quase mil advogados inscritos em seus quadros. “No entanto, algo que chama atenção e um indicativo de advocacia abusiva, é o fato que quase todas as ações de empréstimos consignados são patrocinadas por advogados de outros Estados, sendo não mais que 10 causídicos (as).”

O juiz anota que ‘os dados aqui na unidade e em outras comarcas revelam que já foram levantados milhões em alvarás judiciais’.

“Podemos afirmar que as práticas abusivas e ilícitas por conta dessas demandas estão espalhadas nas ações em quase que a totalidade do Judiciário. Aqui mesmo na nossa unidade, tanto nos balcões de atendimento como pessoalmente, são corriqueiras as denúncias sobre irregularidades, inclusive com boletins de ocorrência, indicando algumas condutas que merecem atenção que podem caracterizar práticas contrárias à lei, seja administrativa, cível e inclusive criminosas”, detalha.

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O juiz da 2. Vara Cível de Caxias anota que em vários Estados já existem casos de advogados que estão sendo investigados pelo Gaeco, grupo do Ministério Público especializado em investigar crimes graves, complexos e organizações criminosas, por suspeita de praticarem advocacia predatória e crimes variados.

Entre as reclamações que aportaram em seu gabinete, Sales Leite destacou: partes que alegam desconhecer o advogado ou advogada que as representam; ações impetradas em nome de pessoas já falecidas; mesmo endereço sendo utilizado em nome de várias partes que residem em outros Estados; partes que não têm conhecimento da ação; que nunca tiveram contato e nem outorgaram nenhum mandato para que lhes representassem; que não receberam os valores dos alvarás ou receberam a menor.

Ainda, segundo o juiz, constam alegações de saques feitos sem a ciência e anuência de partes, de valores que pertenciam exclusivamente aos requerentes do processo, caracterizando o crime de falsidade documental. Ele sustenta, também, que existe ‘um verdadeiro conluio com sindicatos, os quais fazem a captação de clientes para escritórios de advocacia’.

No capítulo relativo à ‘participação de sindicatos’ o juiz indica relatos das partes prejudicadas e certidões juntadas nos autos. “Tudo indica que os representantes (advogados {as}) após receberem seus honorários abandonam a parte e ela sequer fica ciente do resultado da ação e de valores que tem a receber, e após aparece um outro advogado, e em acordo com sindicatos, vão até a parte e fazem a intermediação para que ela venha sacar o valor do alvará, mas em muitos casos com valores bem menor do que teriam direito.”

Em dois processos ‘com fortes suspeitas de irregularidades em procurações públicas e interpostas pessoas representando escritórios de advocacia’ o juiz requisitou a abertura de inquéritos policiais.

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A grande maioria desse tipo de ação tem no polo passivo instituições financeiras que têm solicitado reuniões com juízes e desembargadores para denunciar ‘condutas indevidas, que podem consubstanciar litigância abusiva, juntando diversos dados acerca de como advogados atuam em diversas comarcas’.

O advogado Wilson Sales Belchior, que representa uma dessas instituições financeiras, avalia que a decisão do juiz Sales Leite ‘representa um marco no combate à litigância predatória e pode servir de referência para outras jurisdições’.

“Esse comportamento viola as normas fundamentais do processo e prejudica o sistema nacional de justiça, de maneira que exige atenção de todos os players. Acertada, nesse caso, a decisão judicial e as providências adotadas”, diz Belchior.

Para o juiz de Caxias, a litigância predatória é ato ‘violador da boa-fé objetiva’.

Ao decretar o sobrestamento das ações, Sales Leite destacou o ‘poder-dever do magistrado de tomar medidas saneadoras para coibir o uso abusivo do acesso à Justiça como um todo’ e ‘estancar a sangria, litigiosidade artificial e práticas predatórias’.

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Sobre a citação a uma das advogadas, o magistrado anotou. “É imperioso destacar que alguns autores das ações estiveram presentes no Fórum da comarca de Caxias, informando que não tinham conhecimento das ações ajuizadas em seu nome, acrescentando que seus empréstimos foram contratados, e que desconhecem a advogada supramencionada, embora constem instrumentos procuratórios juntados em todos os processos.”

O juiz transcreveu em sua decisão de nove páginas trechos de uma entrevista do advogado Fredie Didier Jr. ao canal Jota. Segundo ele, é ‘importante entender os pressupostos do que está acontecendo para evitar confusões, como, por exemplo, misturar dois fenômenos distintos, o social e o jurídico’.

O primeiro fenômeno, destaca Didier Jr na entrevista ao site jurídico, é a litigância de massa, ‘um fenômeno lícito em princípio, derivado de distorções regulatórias no país’. “Não há ilicitude na litigância de massa.”

O segundo é a litigância de má-fé, ‘já regulada há muito tempo e combatida com frequência’. “Envolve abuso do direito de demandar e há registros sobre isso no Brasil desde os anos 1950 (...) uma estratégia orquestrada de práticas ilícitas envolvendo vários processos. Não se trata de um caso isolado de má-fé, mas de uma ação coletiva com o propósito de causar prejuízo ou vantagem ilícita.”