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Opinião | Molestar cetáceo pode ser classificado como crime?

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convidado
Por César Dario Mariano da Silva*
Atualização:

Quando vi a notícia achei que era brincadeira, mas não é.

Foi instaurada investigação criminal para apurar a prática de crime de molestação de cetáceo, que teria sido praticado por um ex-presidente da República.

Baleia-jubarte Foto: Julio Cardoso/Projeto Baleia à Vista

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Acho bizarro alguém se preocupar com conduta tão insignificante enquanto outras muitos mais graves abundam sem a devida apuração e punição.

Isso mesmo. Enquanto traficantes flagrados com centenas de quilos de drogas são condenados a penas ridículas, bem inferiores a quatro anos de reclusão, aquele que incomodar um cetáceo pode ser condenado à pena de no mínimo dois anos de reclusão, superior ao homicídio culposo, cujo bem jurídico tutelado (a vida) é muito mais importante do que a proteção da tranquilidade da baleia ou de um golfinho, que prevê pena de detenção de um a três anos (art. 121, § 3º, do CP).

Aliás, esse é um exemplo comumente dado em sala de aula do que não pode ser criminalizado e de como o sistema penal pode ser subvertido com penas absolutamente desproporcionais à conduta praticada.

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Só para contextualizar, foi instaurado procedimento criminal investigatório para apurar a conduta do ex-presidente Bolsonaro, que se aproximou demais de uma baleia jubarte pilotando um jet-ski, provavelmente para filmar ou tirar fotos, o que teria incomodado o animal.

Ocorre que a Lei nº 7.643, de 18 de dezembro de 1987 pune essa conduta com pena de dois a cinco anos de reclusão, além do pagamento de multa. Diz a norma penal:

“Art. 1º Fica proibida a pesca, ou qualquer forma de molestamento intencional, de toda espécie de cetáceo nas águas jurisdicionais brasileiras.

“Art. 2º A infração ao disposto nesta lei será punida com a pena de 2 (dois) a 5 (cinco) anos de reclusão e multa de 50 (cinquenta) a 100 (cem) Obrigações do Tesouro Nacional - OTN, com perda da embarcação em favor da União, em caso de reincidência”.

Nem vou discutir se houve o dolo direto de molestar o animal, expressamente exigido na norma penal sem o que o fato é atípico, isto é, não constitui infração penal

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A questão é a seguinte: essa simples conduta poderia ser eleita pelo legislador para a configuração de um crime?

Antes de tecer breves comentários sobre o tema, anoto que não estou a me referir a matar ou ferir o cetáceo, mas a uma mera importunação ou incômodo.

Do ponto de vista material o crime é a violação a uma norma penal incriminadora, que fere um bem jurídico constitucionalmente protegido e causa danosidade social.

Bem é tudo aquilo que satisfaz a uma necessidade humana, de natureza material ou imaterial. Se esse bem for protegido pelo direito, recebe o nome de bem jurídico. Se protegido pelo direito penal, tem a denominação de bem jurídico penal. São exemplos de bens jurídicos penais a vida, o patrimônio e a honra.

Com efeito, o direito penal assume caráter fragmentário e subsidiário.

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Ex-presidente Jair Bolsonaro Foto: Wilton Junior/Estadão

Sua fragmentariedade decorre do fato de não tutelar todos os bens jurídicos, mas apenas aqueles considerados mais importantes e cuja violação se mostre intolerável, ou seja, cause considerável abalo social. Assim, não são todos os bens jurídicos que merecem a tutela penal, mas fragmentos deles.

O direito penal também é eminentemente subsidiário, devendo intervir apenas quando os demais ramos do direito se mostrarem ineficazes. Ou seja, o Direito Penal é a ultima ratio.

Objeto material do crime é a pessoa ou a coisa que a conduta lesiva atinge diretamente. Exemplos: homem vivo no homicídio e a coisa subtraída no furto. Há crimes em que não existe objeto material, como no falso testemunho e ato obsceno. Também há delitos em que o objeto material e o sujeito passivo se confundem na mesma pessoa, como ocorre com o crime de lesão corporal em que a pessoa que sofre a agressão é ao mesmo tempo sujeito passivo e objeto material do crime previsto no art. 129 do CP.

Se há de existir um bem jurídico penal é porque a lei deve considerar alguma situação como valiosa para a vida social. A função da pena é manter a estrutura básica de uma sociedade.

De acordo com o direito penal moderno a punição do criminoso tem como principal função restabelecer a confiança no sistema, que é atingida quando um bem jurídico penal é violado, podendo citar como exemplos os casos de homicídio em que o bem jurídico tutelado é o direito à vida e os de furto em que o bem jurídico protegido é o direito de propriedade.

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Preceitua o princípio da ofensividade que há necessidade de ser analisado se a conduta do sujeito causou abalo social e se foi de tal proporção que justifique a intervenção penal. Dessa forma, somente podem ser erigidas à categoria de crimes condutas que efetivamente obstruam a convivência em sociedade, ou seja, que causem abalo social. Danos de pequena monta que não propiciem perturbação da vida social não devem receber atenção do direito penal, que é reservado apenas para situações graves a ponto de colocar em risco a livre convivência ou até mesmo a existência do grupo social. Por isso, v.g., condutas meramente imorais, mesmo que causem considerável escândalo, não autorizam a intervenção do Direito Penal.

A ofensividade de uma conduta deve ser analisada sob dois prismas: o legislativo e o jurisdicional. No primeiro caso, o legislador não deve criminalizar condutas que não violem bens e valores fundamentais para a sociedade. No segundo, o juiz deve afastar o crime quando a conduta, embora típica, é inofensiva ao bem jurídico tutelado pela norma penal.

A preocupação com a ofensividade decorre do caráter fragmentário do direito penal. Assim, o direito penal somente deve ser aplicado quando os benefícios dele decorrentes são maiores do que os malefícios que pode causar com a aplicação de uma sanção.

Assim, não é qualquer objeto regulado por uma norma que é bem jurídico penal, mas somente aquele que desempenhar alguma função valiosa para a sociedade, cuja violação cause danosidade social.

Importunar uma baleia causa danosidade social? Dessa conduta emerge algum dano para o animal? Ele pode desaparecer do nosso meio ambiente?

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Evidente que não.

Se não há danosidade social e sequer lesão ao objeto material, que é o cetáceo, como eleger a proteção da tranquilidade do cetáceo como bem jurídico penal?

Uma simples multa administrativa daria conta do recado e impediria a aproximação exagerada do animal de modo a molestá-lo, acolhendo o princípio da intervenção mínima no direito penal, que estabelece sua aplicação apenas nos casos em que os demais ramos do direito se mostrarem ineficazes.

César Dario Mariano da Silva Foto: Arquivo pessoal

Com efeito, por não haver lesão a um bem jurídico penal e sequer ao objeto material, o fato de alguém molestar o cetáceo não pode configurar infração penal, sendo o tipo penal nesse particular absolutamente inconstitucional por atentar contra o “status libertatis” do acusado de conduta que não poderia ser tipificada como crime.

*César Dario Mariano da Silva, procurador de Justiça – MPSP. Mestre em Direito das Relações Sociais – PUC/SP. Especialista em Direito Penal – ESMP/SP. Professor e palestrante. Autor de diversas obras jurídicas, dentre elas: Comentários à Lei de Execução Penal, Manual de Direito Penal, Lei de Drogas Comentada, Estatuto do Desarmamento, Provas Ilícitas e Tutela Penal da Intimidade, publicadas pela Editora Juruá

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