
Nos termos da Lei 11.529/2011 ("Lei de Defesa da Concorrência") cabe ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica ("CADE") decidir, na esfera administrativa, sobre a existência de infrações à ordem econômica e impor as sanções administrativas cabíveis.
Agentes econômicos que venham a praticar condutas antitruste estão sujeitos à imposição de multa que pode variar de 0,1% a 20% do faturamento bruto obtido no ano anterior à instauração do processo administrativo, bem como a outras medidas comportamentais e estruturais com o objetivo de remediar eventuais efeitos nocivos à concorrência.
Seguindo uma tendência mundial, no decorrer dos últimos anos avolumaram-se as discussões em torno do chamado private enforcement, como medida na esfera civil de desestímulo à formação de cartéis.
Por meio das chamadas Ações de Reparação de Danos Concorrenciais ("ARDCs"), aqueles que julgam terem sido prejudicados por uma infração concorrencial podem ingressar em juízo para defesa de seus interesses, visando à cessação da conduta e ao recebimento de indenização por perdas e danos eventualmente sofridos.
A tutela judicial pode se dar de forma individual - quando a própria parte que acredita ter sido vítima da conduta ingressa com a ação judicial - ou, também, de forma coletiva, principalmente por meio da atuação do Ministério Público, ou, em alguns casos, de associações constituídas há pelo menos um ano.
Tratando-se de discussão razoavelmente nova nos Tribunais Brasileiros, cuja matéria de fundo é bastante sofisticada, muitas dúvidas surgiram em relação a conceitos e critérios envolvendo a reparação de danos concorrenciais, como por exemplo, prazo e marcos de prescrição da ação reparatória, cálculo do dano e a própria responsabilidade dos agentes.
Nesse contexto, foi sancionada a Lei n. 14.470, de 16 de novembro de 2022, introduzindo alterações relevantes à Lei de Defesa da Concorrência no intuito de regular algumas questões que vinham sendo objeto de controvérsia na comunidade antitruste e nos casos já submetidos ao judiciário brasileiro.
De acordo com a nova lei, o prazo prescricional fica suspenso durante a pendência do processo administrativo no CADE. A prescrição ocorrerá no prazo de cinco anos, a contar da publicação do julgamento final do processo administrativo pelo CADE.
Além disso, alterando a sistemática da responsabilidade civil brasileira - que estabelece que a indenização é medida exatamente pela extensão do dano - as novas disposições da Lei de Defesa da Concorrência também passam a dispor que as vítimas de um cartel têm direito ao ressarcimento em dobro pelos prejuízos que tenham sofrido.
A nova lei traz também uma previsão relativa à questão do passing-on, que diz respeito ao repasse de eventual sobrepreço por agentes intermediários da cadeia de produção a seus próprios consumidores: o repasse não será presumido e o ônus da prova caberá aos réus das ações indenizatórias.
Uma das grandes críticas às ARDCs residiria no fato de que o estímulo ao ajuizamento de ações indenizatórias poderia acabar prejudicando o Programa de Leniência e criaria desincentivos à celebração de Termos de Compromisso de Cessação ("TCCs"). Isso porque os agentes que celebram acordos com o CADE precisam confessar a prática do ilícito ou, no caso de TCCs, reconhecer a participação nos atos investigados, de forma que acabam ficando em posição de maior vulnerabilidade no âmbito das ações reparatórias.
Tentando de alguma forma equilibrar o fomento às ARDCs e a proteção aos acordos celebrados com o CADE, a nova lei (i) afasta a aplicação do dano em dobro para os agentes que colaborem com a autoridade concorrencial, que responderão somente pelos prejuízos causados; e (ii) isenta os colaboradores da responsabilização solidária na esfera cível, de forma que respondam única e especificamente pelo dano que tenham diretamente causado. Trata-se de exclusões relevantes, pois limitam o valor da indenização à efetiva extensão do prejuízo experimentado em decorrência de operações comerciais realizadas apenas com aquele agente e não com os demais participantes da conduta anticompetitiva.
Também tendo em mira a proteção ao TCC, foi vetada a exigência inicialmente prevista de que os agentes colaboradores se sujeitassem obrigatoriamente a uma oferta de arbitragem aos demandantes da reparação civil. Em suma, pretendia-se impor como requisito ao TCC que seu signatário concordasse em submeter à arbitragem futuras discussões reparatórias, se assim quisesse o terceiro demandante. Ainda que a previsão tenha sido vetada, não se afasta a possibilidade de que, em negociações vindouras, haja tentativa de inserir tal oferta de arbitragem nos acordos com o CADE. Tampouco que, exercendo livremente a autonomia da vontade, as partes de uma ARDC submetam a questão à arbitragem.
A nova lei também passou a estabelecer que a decisão do CADE será apta a fundamentar a concessão da tutela de evidência, instituto previsto no Código de Processo Civil que permite ao juiz da causa antecipar o provimento final buscado pela parte autora, independentemente da demonstração de urgência, desde que preenchidos determinados requisitos previstos na lei.
Ainda permanece discutível como o novo dispositivo legal será interpretado pelos Tribunais brasileiros, uma vez que, apesar de julgar a existência de um cartel, o CADE não apura qual teria sido o dano que teria sido suportado pelos consumidores. Ou seja, embora a decisão da autoridade concorrencial possa indicar que a prática antitruste de fato ocorreu, não há liquidação na esfera administrativa dos prejuízos causados ao mercado - muito menos dos prejuízos sofridos individualmente por cada um que adquiriu o produto supostamente cartelizado. Até porque a responsabilidade administrativa independe da verificação do dano, bastando a mera potencialidade lesiva da conduta anticompetitiva para sua caracterização.
Diversamente, o sistema de responsabilidade civil brasileiro está intrinsicamente ligado à demonstração de um dano efetivo. No caso das ARDCs deve ser demonstrado por meio de prova econômica robusta, fato que parece inviabilizar a antecipação do provimento final almejado pelos autores em uma possível tutela de evidência. Mesmo que
comprovado o cartel, dificilmente haverá prova robusta do dano incorrido e muito menos de sua extensão quando do ajuizamento da demanda.
Se as novas disposições legais, por um lado, parecem contribuir para reduzir as incertezas que envolvem as ARDCs, privilegiando a segurança jurídica, por outro, os debates certamente continuarão aquecidos, especialmente em relação às diferentes metodologias de cálculo do dano e do passing on.
Os tribunais brasileiros também ainda enfrentarão as discussões relativas à solidariedade. O ponto central dos debates residirá, principalmente, nas situações em que a participação de um determinado agente no cartel tenha sido meramente acessória ou bastante reduzida em comparação com o envolvimento de outras empresas.
E, por fim, vale um destaque para as ações coletivas, que ainda envolvem tantas controvérsias e, com certeza, demandarão um longo amadurecimento por parte da jurisprudência até que diversas questões possam sedimentar-se no direito brasileiro.
*Mônica Mendonça Costa, sócia de TozziniFreire Advogados na área de Resolução de Conflitos
*Carolina Matthes Dotto, sócia de TozziniFreire Advogados de Resolução de Conflitos