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Opinião | O ‘carona’ da corrupção: os ‘corretores’ de contratações públicas

Seja como for, é de se rejeitar o absurdo interpretativo em qualquer hipótese. Tornar a adesão à ata de registro de preços a regra geral – decorrente do improviso, da negligência ou da má-fé – implica boicotar os princípios constitucionais da Administração Pública e estabelecer um regime de concorrência desleal de mercado

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convidado
Por Ruy Marcelo

Reportagem de programa televisivo nacional, recentemente, escancarou mais um caso de aparente fraude licitatória envolvendo negociação ilícita de atas de registro de preços.

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O episódio está sob investigação no Rio Grande do Sul e consiste na suspeita de direcionamento de contrações públicas, mediante suposta oferta de propina a agentes públicos, por meio da sugestão de uso administrativo do instrumento da Adesão à Ata de Registro de Preços.

Embora fraudes semelhantes se verifiquem há anos e estejam sob permanente combate nos tribunais de contas e demais órgãos de controle, o assunto merece especial destaque. Porque, em várias ocorrências, as investigações têm associado a fraude a um instrumento previsto em lei, que objetiva garantir eficiência, sem abrir mão da impessoalidade, da probidade e da moralidade administrativas.

Se tal associação não implica demonizar a previsão legal, questioná-la é inadiável: é de se repensar a disciplina jurídica da adesão a atas de registro de preços?

Também conhecido como “carona”, a Adesão a Ata de Registro de Preços é figura capitulada no art. 86, § 2.º, da Lei 14.133/2021 (lei geral de licitação e contratos administrativos). E uma coisa é certa: nem mesmo em sua literalidade, o texto normativo autoriza preferências pessoais na escolha de empresas e atas no sistema de compras por registro de preços. A lei impõe condições à adesão a atas que, bem compreendidas pelo aplicador, permitem zelar pela vantajosidade das compras públicas sem renúncia aos indeclináveis deveres de economicidade e de tratamento isonômico e republicano aos agentes de mercado.

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O que possivelmente está ocorrendo é o mau uso ou má interpretação do dispositivo legal para favorecer corrupção por negociatas patrimonialistas. A interpretação meramente literal e isolada do texto normativo tem dado margem a abusos na aplicação da norma. Supõe o mau intérprete haver carta branca para o gestor estabelecer preferência subjetiva e afastar a obrigatoriedade de licitação, desde que haja ata de registro de preços em vigor para o objeto necessário, com preços compatíveis com o mercado.

Não obstante, a lei não se mostra leniente com a criminalidade, pois traça condições à alternativa. Se consta permissão para pegar carona no resultado de licitação alheia, tal carona jamais poderá se dar sem motivo vantajoso ao interesse público e com quebra de impessoalidade. O cerne é que não se pode considerar vantagem autorizadora de adesão a simples conveniência pessoal de substituir a tarefa de preparar licitação pelo uso de uma ata em vigor a preços compatíveis com mercado. Nem mesmo pode partir de uma preferência pessoal do gestor pela empresa que lhe visita exibindo a “sua ata da felicidade”.

A norma aponta claramente que a opção preferencial é de licitar, em vez de pegar carona. Portanto, a possibilidade da adesão é para situações excepcionais, como a exemplificada expressamente na lei, de possível ineficácia que ameace o fim público a satisfazer, por riscos comprovados de desabastecimento ou descontinuidade de serviço público. Nesse sentido, a adesão à ata está vocacionada a atender essencialmente os casos de dispensa de licitação (como as contratações emergenciais) em que se faz impositivo estabelecer critério simplificado de seleção da empresa, a ser contratada com a máxima brevidade.

Por outro lado, a sistemática legal permite que se faça a opção pela licitação sem perda de escala e de economicidade. Com o levantamento da necessidade de compra, o gestor deverá, preliminarmente, no bojo do planejamento anual de contratações, consultar se outras entidades administrativas também estão com semelhante demanda de registro de preços e em vias de abrir licitações com essa finalidade. A partir disso, deverá buscar a cooperação para se tornar participante (aderir, mas desde o início), a fim de que uma única licitação atenda a necessidade paralela de todos os setores administrativos e unidades federadas. Nesse sentido, dispõe o Decreto 11.462/2023 para a Administração Federal.

Seja como for, é de se rejeitar o absurdo interpretativo em qualquer hipótese. Tornar a adesão à ata de registro de preços a regra geral – decorrente do improviso, da negligência ou da má-fé – implica boicotar os princípios constitucionais da Administração Pública e estabelecer um regime de concorrência desleal de mercado.

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Por outro lado, a adesão a atas de registro de preços deve ser utilizada para atender demanda setorial devidamente estudada. Com efeito, não é indiferente a escolha entre licitar ou aderir a uma ata, impondo-se, sempre, rigorosa motivação, tendo por base estudo técnico preliminar e projeto básico especial para o caso concreto - insuficiente à mera réplica dos documentos usados pelo órgão de origem da ata.

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Por esse estudo, deve ainda ficar evidenciada a compatibilidade entre a necessidade do órgão não participante de licitação e os objetos de possíveis atas de registro de preço em vigor, comparando-se com preços de mercado e os preços fixados em outras atas, para embasar o motivo para escolha de dada oferta disponível. Conforme orienta o TCU, a comprovação da vantagem deve estar calçada em referenciais válidos de mercado, obtidos em conformidade com o art. 23 da Lei 14.133/2021 e art. 5º da IN Seges/ME 65/2021, inclusive mediante consultas a painel de preços da Administração Pública e a contratações similares de outros entes públicos (Acórdão 2.630/2024 – Plenário).

Em qualquer caso, é intolerável que o uso da adesão à ata de registro de preços tenha origem em reuniões escusas, balcões de negócios promovidos por “corretores” de plantão que visitam os órgãos públicos anunciando as atas como seus portfólios pessoais. Inadmissível que a adesão seja jogo de cartas marcadas, para beneficiar empresas determinadas, ao arrepio dos princípios Licitatórios, da Impessoalidade e da Moralidade Administrativas e da Economicidade das despesas públicas.

Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Esta série é uma parceria entre o Blog do Fausto Macedo e o Instituto Não Aceito Corrupção. Os artigos têm publicação periódica

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Ruy Marcelo
Procurador de Contas no AM e Mestre em Direito Ambiental (UEA). Foto: Inac/Divulgação
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