
"No Brasil, três grandes temas vêm à mente quando se pensa em 2020: pandemia mundial, eleições municipais e, finalmente, a vigência da maior parte da LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados)."
Embora a LGPD ainda tenha sido pouco debatida, há entre esses três temas uma clara intersecção: o dever dos candidatos e respectivas campanhas de prestarem contas acerca do tratamento que tenham realizado, para fins eleitorais, de dados pessoais de cidadãos brasileiros. Esse fato se acentuou e se acentua com a crescente digitalização das campanhas eleitorais, considerando não somente as regras de distanciamento social como também a permissão de impulsionamento de propaganda eleitoral pelos provedores de aplicação de internet.
Se em 2019 houve alguma discussão quanto à aplicabilidade ou não da LGPD para fins eleitorais, em 2020 deixou de haver. Isso porque o tema se pacificou com a Resolução nº 23.610/2019 do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), editada para vigorar no pleito de 2020, que em seus artigos 28 (inciso III) e 41 deixa expressa tal aplicabilidade.
Não havendo dúvida sobre a incidência da norma em questão no âmbito das atuais campanhas eleitorais, e sendo certo que o seu artigo 6º, inciso X, traz o dever de prestação de contas, exigindo que o controlador de dados pessoais comprove "a observância e o cumprimento das normas de proteção de dados pessoais e, inclusive, da eficácia dessas medidas", questiona-se quando e em que momento, no rito processual-eleitoral, o mencionado princípio de prestação de contas acerca do tratamento de dados pessoais previsto na LGPD -também conhecido como princípio de "accountability" - incide e incidirá.
A dúvida surge porque as leis e resoluções vigentes aplicáveis (Lei de Eleições - Lei Federal nº 9.504/1997; Código Eleitoral - Lei Federal nº 4.767/1965; e Resolução nº 23.607/2019 do TSE) estabelecem somente a obrigação de prestação de contas em sentido estrito, isto é, apenas exigem declaração referente ao dispêndio financeiro havido com despesas de campanha.
Pelo regramento atual eleitoral, não há exigência específica sobre a accountability pertinente ao tratamento de dados pessoais. Em razão dessa lacuna, foi editado o Projeto de Lei nº 3.843/2019, hoje em tramitação no Congresso Nacional, que visa incluir, no escopo do rito eleitoral de prestação de contas, a obrigação de candidatos e partidos discriminarem, além do montante gasto com o impulsionamento de conteúdos na internet, também "as bases de dados utilizadas para cadastro de endereços eletrônicos".
No entanto, enquanto não for aprovada uma alteração legislativa nesse sentido, permanecem o debate e a incerteza sobre se e em que momento será exigida esta prestação de contas, o que certamente ensejará disputas judiciais no âmbito da Justiça Eleitoral.
A certeza que se tem por ora é de que a prestação de contas exigida pelo rito eleitoral neste ano deverá ocorrer em dois momentos: entre 21 e 25 de outubro, de forma parcial, e até 15 de dezembro, de forma final (artigo 7º, incisos V, VIII e IX, da Resolução nº 23.624/2020 do TSE).
Não obstante o fato de as penalidades previstas pelo descumprimento da LGPD estarem suspensas até agosto de 2021, assim como pela Resolução Eleitoral nº 23.610/2019 do TSE resta clara a necessidade de obediência à LGPD, é possível que surjam questionamentos judiciais acerca da prestação de contas relativa ao tratamento de dados pessoais pelas campanhas para fins eleitorais.
Trata-se, assim, de um novo contencioso eleitoral, que pode ser iniciado por candidatos e campanhas concorrentes, ou mesmo pelo Ministério Público Eleitoral, exigindo investigação para apurar eventual uso indevido de dados pessoais.
Justamente em razão da ausência de previsão específica acerca dessa prestação de contas, caberá ao Poder Judiciário definir as regras do jogo para as eleições deste ano. As decisões a esse respeito possivelmente servirão de baliza para as resoluções do TSE referentes às eleições de 2022, como é de praxe ocorrer na seara eleitoral.
O momento, portanto, é de incerteza, mas também de cautela e monitoramento em relação a esse novo tema com grande potencial para gerar disputas judiciais.
*Bruna Borghi Tomé, sócia nas áreas de Contencioso e Tecnologia e Inovação de TozziniFreire Advogados
*Sofia Gavião Kilmar, advogada nas áreas de Contencioso e Tecnologia e Inovação de TozziniFreire Advogados