Quem trabalha com o Direito Eleitoral acostumou-se, nos últimos mais de vinte anos, a esperar – não sem alguma angústia – a minirreforma eleitoral dos anos ímpares. Tornou-se tradição os ajustes promovidos pelo Congresso Nacional no interregno das eleições, bem como as críticas – justas ou injustas – à pressa que sempre caracterizou esse movimento, vez que a Constituição Federal exige que mudanças legislativas estejam publicadas até um ano antes da eleição do ano seguinte para serem nela aplicadas.
De outro lado, nos anos ímpares a Justiça Eleitoral costuma estar menos no foco do debate público, a não ser no final do ano, quando se desdobra para ajustar as suas resoluções aos novos dispositivos legais então criados.
Pois 2023, neste aspecto, foi completamente atípico. Em razão de desavenças entre Câmara dos Deputados e Senado Federal, este último incomodado por sempre lhe ser reservado tempo diminuto de debate nas minirreformas eleitorais, não tivemos minirreforma eleitoral. Pela primeira vez em muitos anos, faremos duas eleições consecutivas sob o mesmo conjunto de leis.
Ainda que cada ciclo eleitoral nos dê a percepção de mudanças incrementais que podem melhorar a regulação do pleito, é igualmente importante termos alguma estabilidade normativa. É de se comemorar, portanto, que sigamos para 2024 com as leis que valeram em 2022. Os atores do jogo eleitoral – pessoas candidatas, partidos políticos, federações partidárias, Ministério Público Eleitoral e Justiça Eleitoral – agradecem não precisar apreender e interpretar novas normas, sem saber como serão aplicadas.
Não fosse o Tribunal Superior Eleitoral – e a realidade, a impor que a corte agisse – essa retrospectiva poderia terminar por aqui. Mas não teremos essa decepção. Muita coisa importante foi decidida pela Justiça Eleitoral em 2023.
Lembremos que o ano começou com um dos episódios mais trágicos da nossa história democrática. Ataques golpistas – decorrentes da inaceitável refutação do sistema de votação e da recusa do ex-presidente em aceitar o resultado das eleições – chocaram o País no dia 8 de janeiro. As sedes dos poderes foram vandalizadas, na tentativa de derrubar o governo eleito, que acabara de tomar posse.
Dentre as diversas respostas dadas pelas instituições, cabe aqui destaque à percepção, por parte do TSE, de que a proteção da normalidade e legitimidade do processo eleitoral não se esgota com a diplomação dos eleitos. A missão que a Constituição Federal outorgou à Justiça Eleitoral é contínua e deve ser cumprida dia a dia, quando quer que haja ataque à Democracia.
Se até então a jurisprudência reconhecia que as tarefas da Justiça Eleitoral neste tipo de controle exauriam-se depois da eleição, os fatos nos mostraram que isso ocorria apenas porque, até então, grupos organizados não haviam buscado deturpar a vontade popular e distorcer os rumos do Estado Democrático fora daquele período. Com o ministro Alexandre de Moraes à frente, o TSE não se acovardou e exerceu papel essencial no retorno à normalidade democrática.
Mas além de enfrentar o improvável, a Justiça Eleitoral também mostrou, em 2023, que é preciso acertar contas com o passado, ou com os diversos passados que nos assombram, e orientar o que se espera do futuro.
O principal acerto de contas deu-se contra a desfaçatez daqueles que usam a máquina pública – dando de ombros para os limites constitucionais e legais – na tentativa desesperada de manter-se no poder. Bolsonaro e seu candidato a vice tornaram-se inelegíveis por transformar o bicentenário da Independência em comício eleitoral, desviando a finalidade pública da comemoração em prol de seus projetos políticos pessoais.
Antes disso, ainda em 2023, Bolsonaro já havia sido condenado à inelegibilidade por achincalhar a República perante a comunidade internacional, convocando embaixadores estrangeiros para ouvir suas infundadas perorações sobre a urna eletrônica.
Destes episódios, ficaram lições também para o futuro. Depois de receber críticas ao longo de anos, por supostamente ser desproporcionalmente dura com mandatários de pequenos municípios ou estados, a Justiça Eleitoral mostrou que ninguém tem carta branca para abusar do poder político ou econômico em detrimento das regras eleitorais.
Descendo amiúde, o TSE traçou parâmetros para o uso de prédios públicos para a realização de lives de cunho eleitoral por pessoas candidatas, bem como mostrou as diretrizes do que se espera de eventos custeados com recursos públicos. Recados essenciais para as eleições municipais vindouras, onde práticas da mesma estirpe sempre foram comuns.
Dificilmente este conjunto de medidas teria sido aprovada pelo TSE, não fosse o trabalho árduo e firme do então Corregedor Geral Eleitoral, ministro Benedito Gonçalves. Tendo mergulhado nos detalhes de cada caso, conduziu as ações judiciais eleitorais no tempo que a Democracia exige, garantindo o exercício pleno da defesa e trazendo, com seus votos, o norte que o País precisava neste momento. O Brasil deve muito ao seu trabalho e dedicação.
Ainda no campo da desinformação – combustível que alimentou e alimenta as práticas dos grupos extremistas que buscaram derrubar nossa Democracia –, o TSE adotou importante posição em 2023, passando a aplicar a estes casos a multa antes reservada exclusivamente à propaganda eleitoral anônima na internet.
Olhando para outro de nossos passados – lamentavelmente bastante presente – o TSE conduziu com firmeza os casos que apuram fraude às cotas de gênero, refutando interpretações mais brandas na identificação das provas de sua ocorrência. Votação zerada ou baixa, ausência de propaganda eleitoral em prol da candidata, arrecadação de campanha irrisória, passaram a ser indícios suficientes de que aquela candidatura foi apenas fictícia, com o intuito de cumprir – apenas de forma aparente – a reserva de vagas prevista na lei.
Também aqui o recado dado ao futuro é promissor e precisa ser entendido com clareza pelas pessoas que dirigem os partidos. Não é mais admissível que sejam lançadas mulheres apenas “para completar a chapa”, sem a que a elas se dê oportunidade de competir em igualdade de condições na disputa.
A ideia de fraude foi também o cerne de outra decisão paradigmática, a que reconheceu a inelegibilidade de Deltan Dallagnol, cassando-lhe o mandato. A mensagem ali, igualmente transparente, foi a de que não se pode burlar o intuito da legislação, valendo-se da má-fé para ascender ao poder.
TSE e STF julgaram outros casos de grande relevo no campo eleitoral em 2023, melhor delimitando, por exemplo, a contagem dos prazos de inelegibilidade ou restringindo as hipóteses de troca partidária quando da criação de novas agremiações. Essa retrospectiva, contudo, seria maçante se descesse em detalhes que interessam a apenas uma pequena parcela de leitores.
O principal ponto desta análise já pode ser percebido. O ano que passou reafirmou que as instituições funcionam quando estão atentas, quando cumprem sua missão sem titubear, fora ou dentro do período eleitoral. Quando são claras em seus recados, permitindo aos atores do tabuleiro eleitoral orientarem suas ações futuras. Quando assumem que não se pode ser tolerante com as pessoas que, de forma intolerante, não aceitam a democracia.
*Fernando Neisser, mestre e doutor em Direito pela USP. Professor de Direito Eleitoral da FGV/SP. Advogado, presidente da Comissão de Direito Político e Eleitoral do IASP (Instituto dos Advogados de São Paulo) e membro fundador da ABRADEP (Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político)
*Paula Bernardelli, advogada eleitoralista, formada em direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), membro da ABRADEP (Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político), da Comissão de Direito Político e Eleitoral do IASP (Instituto dos Advogados de São Paulo) e integra a Associação Visibilidade Feminina