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Opinião | O peso da judicialização da saúde para o SUS

Entre 2020 e 2024, quantidade de ações ligadas ao setor de saúde triplicou, chegando a 61 mil processos por mês; STF criou regras para reduzir o problema

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Por Camila Parise e Anna Luiza Bertin

A saúde é um direito fundamental dos brasileiros, garantido pela Constituição. Cabe ao Estado assegurar, por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), o acesso universal e igualitário às ações e serviços de saúde, incluindo medicamentos que constam na lista de dispensação obrigatória. Com esse compromisso, o SUS se tornou um dos maiores sistemas públicos de saúde do mundo.

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Cada vez mais pacientes recorrem ao Judiciário para obter medicamentos que, embora constem na lista do SUS, não estão disponíveis, ou para acessar produtos inovadores não padronizados, invocando o direito à saúde. Esta judicialização da saúde sobrecarrega o sistema Judiciário, pressiona o orçamento público e exige medidas para manutenção do equilíbrio entre os direitos individuais e a sustentabilidade financeira do SUS.

Segundo o Supremo Tribunal Federal (STF), em 2020, foram registradas cerca de 21 mil novas ações judiciais relacionadas à saúde por mês. Em 2024, esse número triplicou, alcançando 61 mil ações mensais. No volume anual, o total saltou de 347 mil para 600 mil processos. Esses dados evidenciam a urgência de diretrizes para orientar magistrados em questões técnicas e científicas complexas, reduzindo o risco de decisões divergentes.

No segundo semestre de 2024, o STF finalizou os julgamentos dos Temas 6 e 1234, estabelecendo critérios de competência para processar e julgar ações que envolvem o acesso a medicamentos registrados no Brasil perante a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), mas não incorporados ao SUS. Ambas as decisões devem ser aplicadas pelas instâncias inferiores, em casos semelhantes, proporcionando maior previsibilidade jurídica, mas também novos desafios.

O STF determinou que o paciente precisa comprovar os seguintes requisitos para ter acesso a medicamentos não incorporados ao SUS pela via judicial: negativa de fornecimento do medicamento pela via administrativa; demonstração de ilegalidade na decisão de não incorporação ao SUS, ausência de pedido de incorporação ou atraso na análise; inviabilidade de substituição por medicamento já incorporado ao SUS e indicado nos protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas; comprovação científica da eficácia e segurança do medicamento, por evidências científicas de alto nível; necessidade comprovada por laudo médico; comprovação da incapacidade financeira para arcar com o custo do medicamento.

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O Tema 1234 estabeleceu regras procedimentais, como a competência para julgar casos envolvendo medicamentos fora da lista do SUS, legitimidade entre entes públicos e mecanismos de ressarcimento. Também determinou a implementação de uma plataforma nacional que centralize as informações sobre demandas administrativas e judiciais de acesso ao medicamento.

As decisões do STF trazem mais segurança jurídica. Contudo, algumas exigências geram dúvidas e podem ser de difícil comprovação. Por exemplo, a comprovação da eficácia e segurança do medicamento pelo autor da ação, mesmo quando o produto possui registro sanitário na Anvisa.

Também se discute a exigência de comprovação de incapacidade financeira para obter o medicamento vis-à-vis o princípio da universalidade do SUS, que pressupõe acesso igualitário à saúde, independentemente da classe social.

Há receios de que a judicialização migre para as decisões sobre incorporação de novas tecnologias do Ministério da Saúde, uma vez que eventual negativa de incorporação inviabilizaria o acesso do paciente ao produto no âmbito do SUS, tanto pelas vias administrativas quanto pelas judiciais.

No caso do Tema 1234, um dos principais debates é sobre o critério de precificação dos medicamentos pleiteados judicialmente. O STF conferiu ao juiz o poder de determinar o preço de venda do medicamento, com base no menor valor entre o preço proposto no processo de incorporação ou valor já praticado pelo ente em compra pública, sempre limitado ao preço máximo que pode ser praticado ao governo.

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O preço proposto no processo de incorporação é, muitas vezes, inferior ao preço máximo de venda ao governo, pois este considera a oferta do produto em grandes quantidades ao SUS e foi objeto de negociação. Há receio de que o Tema 1234 desestimule a negociação de preços mais vantajosos em processos de incorporação, prejudicando o acesso em larga escala.

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Sob a perspectiva do prescritor, ao dispor sobre a implementação da plataforma nacional, o STF exige o controle ético das prescrições pelo Conselho Federal de Medicina (CFM). Não se sabe ao certo como tal controle será realizado, mas há discussão sobre a possibilidade de a medida inibir a prescrição ou criar uma zona de atrito entre os médicos e o CFM.

Embora as decisões sejam um marco importante, debates em torno de pontos específicos ainda são necessários. O sucesso dessas medidas dependerá da capacidade de todos os atores envolvidos em priorizar o bem-estar dos pacientes sem comprometer a sustentabilidade do sistema de saúde pública no Brasil e mantendo o incentivo à inovação.

Como desdobramentos, percebe-se um aumento de pedidos de esclarecimentos por partes dos juízes sobre o preço do medicamento praticado pelas fornecedoras. No entanto, ainda não existem dados suficientes para avaliar o efeito prático das decisões do STF.

Na esfera legislativa, espera-se que as discussões sobre mudanças nas regras de precificação de medicamentos se intensifiquem. Debates em torno da criação de uma agência única para avaliação de tecnologias em saúde, motivados pelo Tema 1234, também devem ganhar destaque. Trata-se de discussão que demandaria alteração significativa no setor, inclusive legislativa, após amplo debate setorial.

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Sócia de Pinheiro Neto Advogados. Foto: Aivan Moura
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