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Opinião | O semipresidencialismo no Brasil

A questão é saber se esse modelo – adotado na França e em Portugal - pode ser eficaz em um país que, apesar das mudanças socioeconômicas ocorridas entre as décadas de 1940 e 1990, continua marcado pela pobreza, pelo baixo nível educacional, pelas disparidades regionais e pelos vícios da representação parlamentar

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convidado
Por José Eduardo Faria

Proposta por mais de 40 deputados e endossada pelo novo presidente da Câmara dos Deputados, o semiparlamentarismo voltou a ser debatido como alternativa para modernizar as instituições governamentais, viabilizar uma governança federativa mais eficaz e colocar em novos termos as relações entre o Poder Legislativo e o Poder Executivo, especialmente em matéria de formulação do orçamento da União e do alcance e dos valores das emendas parlamentares.

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Por meio dessas emendas, em 2015 o Senado e a Câmara foram responsáveis pela execução de apenas 2% de todas as despesas discricionárias do Executivo. Hoje, as duas casas legislativas já controlam 24% dessas despesas e, mais preocupante, estão se mobilizando ainda mais para aumentar esse percentual, o que lhes permite sevar sua base eleitoral e abastecer ONGs pouco transparentes. Se tiverem êxito, uma das consequências será o enfraquecimento do Executivo, pondo em risco a formulação, a implementação e a execução de políticas públicas estruturantes orientadas por critérios de eficiência, responsabilidade, justiça social e ética, das quais depende o futuro de toda a nação.

Só nos últimos cinco as emendas parlamentares custaram cerca de R$ 186 bilhões aos cofres públicos, segundo o jornal Valor. Esse aumento foi justificado pela cúpula do Congresso em nome do fortalecimento dos municípios. “A luta é para que eles ocupem o centro do arranjo federativo. Fortalecer o município é dar a cada cidadão o direito à cidade, que é onde se constrói a cidadania”, afirma o novo presidente do Senado, Davi Alcolumbre. Ele e o presidente da Câmara têm o apoio de parlamentares que, desconhecendo Teoria do Estado e a própria história do Brasil, consideram a PEC do semipresidencialismo como “a independência do Parlamento Brasileiro depois de 136 anos de presidencialismo imperial”.

Institucionalmente, no semipresidencialismo o presidente da República continua sendo eleito pelo voto popular e mantém a prerrogativa de nomear ministros dos tribunais superiores, indicar o procurador-geral da República, o Advogado-Geral da União, o presidente e a diretoria do Banco Central e de cuidar de assuntos relacionadas às Forças Armadas. Já o comando do Executivo fica sob controle de um primeiro-ministro indicado por ele ou pelo Congresso, e que exerce a função de coordenação do governo e pode ser destituído se perder a confiança parlamentar. Assim, o primeiro-ministro e o ministério são responsáveis perante o Parlamento. Mas, para funcionar bem, o semipresidencialismo pressupõe um sistema partidário bem organizado, com partidos representativos e com consistência ideológica.

A questão é saber se esse modelo – adotado na França e em Portugal - pode ser eficaz em um país que, apesar das mudanças socioeconômicas ocorridas entre as décadas de 1940 e 1990, continua marcado pela pobreza, pelo baixo nível educacional, pelas disparidades regionais e pelos vícios da representação parlamentar. Atualmente, as regiões Norte, Nordeste e Centro Oeste, que têm apenas 42,5% do eleitorado e 43,7% da população brasileira, detêm 74% dos assentos no Senado e 50,1% na Câmara. O Brasil também é um país cuja institucionalidade até hoje continua longe de ser moderna e eficiente e em que as formas de articulação entre Estado e sociedade civil jamais propiciaram uma efetiva emancipação dos segmentos mais desfavorecidos da população.

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Também é um país que não apenas se acostumou a mudar as regras do jogo a cada impasse político, como ainda mantém, nas regiões mais atrasadas, distintas formas de clientelismo, populismo e cartorialismo. Por isso, apesar da necessidade de uma tomada de consciência coletiva com relação à ruptura dos gargalos estruturais que dificultam o desenvolvimento social e econômico, até hoje muitos problemas do passado continuam sem resposta. Nesse cenário, de que modo é possível obter um consenso social mínimo em torno de um projeto nacional em condições de catalisar valores e anseios por meios democráticos? Quais devem ser as funções do Estado em matéria de planejamento estratégico?

Pelo perfil de seus defensores, os adeptos do semipresidencialismo não têm respostas para essas perguntas nem estão interessados nelas. Pragmáticos e sem maiores preocupações com a qualidade das instituições políticas, seus objetivos são, basicamente, controlar cargos comissionados, receber recursos públicos sem definição de objetivos claros e de interesse de toda a Nação e substituir critérios de gestão racionais por enfoques paroquiais nos municípios e nos estados. Esse desequilíbrio entre os entes nacionais e os entes subnacionais - sob a forma de centenas de municípios de pequeno porte e administrativamente ineptos - converte a União em refém de interesses locais, regionais, cartoriais e corporativos. Dificulta o cálculo econômico racional no setor público e não gera transformações profundas da governança local. Desorganiza o sistema de competências concorrentes na gestão governamental e na oferta de serviços essenciais previstos pela Constituição promulgada em 1988. Gera indefinição de responsabilidades entre as três instâncias federativas. Esvazia o poder de agenda da União. E leva o presidente da República - seja ele quem for - a perder as noções de prioridade e de estratégia.

Ao endossar a substituição do presidencialismo pelo semipresidencialismo, o novo presidente da Câmara caminha mesma na linha de seu padrinho e a antecessor, para quem “o orçamento da União é de todos os brasileiros” e “a burocracia de Brasília não gasta sapato percorrendo os municípios do país”. Por burrice, ignorância ou voracidade, não aprendeu na escola que, sem boa governança federativa, sem uma eficiente articulação intergovernamental – enfim, sem a reconstrução do conceito de público - o país não tem futuro.

Convidado deste artigo

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José Eduardo Faria
Professor titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral da USP e membro do Conselho de Inovação e Pesquisa da Fundação Getúlio Vargas. Foto: Arquivo pessoal
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