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Os fins da Justiça do Trabalho

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Por Nasser Ahmad Allan, Eduardo Surian Matias e Antonio Vicente Martins
Atualização:
Nasser Ahmad Allan, Eduardo Surian Matias e Antonio Vicente Martins. FOTOS: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Em maio deste ano, a Justiça do Trabalho comemorou 80 anos de sua instalação no país. Criada por decreto, dois anos antes, no auge da ditadura estadonovista, a instauração efetiva somente veio a acontecer em maio de 1941.

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Essa senhora tem muito a contar.

Surgiu em um período em que o Estado e a Igreja Católica buscavam promover a conciliação entre as classes sociais, negando e reprimindo os conflitos nas relações sociais de produção, onde representantes do capital e do trabalho deveriam conviver de modo harmônico abdicando de seus interesses classistas em benefício dos nacionais, constantemente identificados com um dos lados dessa correlação de forças. Desnecessário enunciar qual deles.

Considerada a importância atribuída a essa pacificação social, em especial, em um contexto político externo com a Segunda Guerra Mundial e com a presença marcante do fantasma do Comunismo no Brasil, aliás, algo que jamais passou de uma ameaça imaginária, porém, útil para a formulação do discurso mítico, com a apresentação de um inimigo poderoso a ser combatido, a opção consistiu em vincular-se a instituição recém surgida ao Poder Executivo Federal, possibilitando-se assim um controle mais efetivo sobre ela. Não havia, portanto, razão a cogitar-se independência ou autonomia. Com a   Constituição de 1946, o Poder Judiciário a incorporou.

Esse fato não se mostra suficiente a retirar a importância da Justiça do Trabalho para os/as trabalhadores/as, eis que a demanda por mecanismos para tornar exigíveis as normas recém criadas para regular as relações de trabalho era constante nos movimentos insurgentes, organizados em sindicatos oficiais ou ainda nas antigas entidades sindicais paralelas à estrutura estatal. Portanto, por mais que interessasse (e muito) ao Estado, a nova instituição também representava o atendimento de uma reivindicação da classe trabalhadora.

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Nas suas oito décadas de existência, a Justiça do Trabalho atravessou, com alguns sobressaltos, momentos político-jurídicos marcantes na história do país, como o golpe civil-militar de 1964 e, por consequência, a Constituição autoritária de 1967 e a, mais autoritária ainda, Emenda de 1969. Ganhou arranjos democráticos com o fim da ditadura e a promulgação da Constituição de 1988 e viu-se mais poderosa com a ampliação de sua competência material pela Emenda Constitucional 45, de 2004.

Ainda altiva e vigorosa, em julho de 2017, a Justiça do Trabalho observou um atentado contra a sua existência, com a publicação da Lei 13.467, que alterou mais de duas centenas de dispositivos na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Tais modificações implicavam profunda transformação no Direito Material e Processual do Trabalho, assim como no direito sindical. Mas, merece maior destaque, uma das razões das mudanças, uma das fontes materiais da nova legislação, a difusão da ideia de que aquela senhora estava ultrapassada e, por atrapalhar o desenvolvimento econômico, deveria sair de cena, o mais rápido possível.

Tal qual um de seus milhões de reclamantes, trabalhadores/as que depois de uma vida dedicada ao trabalho, à empresa, são dispensados/as como maquinário obsoleto, como peça em desuso, cuja inutilidade é certificada pelos novos tempos e por gerações de trabalhadores/as mais jovens, ágeis e baratos/as, a Justiça do Trabalho foi escanteada, colocada em segundo plano de importância para, finalmente, quem sabe, depois de uma rápida transição, ser extinta.

Logo ela, que prestou tão valorosos serviços ao Estado? Estruturada para funcionar como mediadora institucional nos conflitos entre capital e trabalho, missão cumprida com afinco e eficiência por 80 anos, ao contribuir com a estabilidade social e propugnar a conciliação nas relações sociais de produção como mote de existência, passava a ser desprezada pelos representantes políticos do capital que lhe rotulavam como trava ao crescimento econômico.

Ela, que tão bem atendeu aos propósitos para os quais foi instituída, passara a ser segregada, tratada como indesejada, como ultrapassada. Ela e os ramos do Direito que lhe serviam de instrumental não são mais desejáveis. O enredo neoliberal aponta para outra direção, para a desregulamentação das relações de trabalho, para o enfraquecimento dos sindicatos de trabalhadores/as, afinal, a ideologia da classe dominante espraia-se para as demais e torna hegemônica a forma de existir, da qual resulta a crença de que suprimir direitos gera crescimento econômico.

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Neste cenário, os representantes do grande capital no parlamento e no Poder Executivo parecem acreditar no fim da função pacificadora da Justiça do Trabalho. Decerto, também creem na incapacidade da classe trabalhadora organizada de lhes importunar, de criar-lhes sobressaltos nas relações sociais de produção e mecanismos de atenuação da mais-valia.

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A representação do grande capital age no sentido de retirar as concessões realizadas no passado em forma de legislação trabalhista e social, pois, a atual etapa do capitalismo mostra-se vitoriosa e prescinde de freios ou de amortecedores sociais. De forma ávida e célere, ela vaticina não haver espaço para um Direito do Trabalho tutelar dos/as trabalhadores/as.

Tampouco se constata razão de existir a um órgão especializado no Poder Judiciário que tem por função dirimir os conflitos entre capital e trabalho, mesmo que isso na prática venha a representar na maior parte do tempo aplicar a legislação protetiva em dissídios individuais e constranger a atuação sindical no âmbito coletivo.

A miopia do empresariado brasileiro impede-o de vislumbrar a importância da Justiça do Trabalho para a estabilidade do capitalismo nacional. Este empresariado, culturalmente transgressor de direitos, aparenta encontrar-se ressentido com decisões judiciais em dissídios individuais, mas não reconhece, de outro lado, o papel desempenhado por essa estrutura do Poder Judiciário nas relações coletivas de trabalho. A dificuldade de enxergar a ambiguidade do papel cumprido pela magistratura trabalhista explica a sanha patronal em pretender esvaziar o poder dela, algo saliente em parte das modificações introduzidas pela Lei 13.467. de 2017.

Ao alcançar os 80 anos, essa senhora, já idosa, fragilizada por um ambiente externo hostil, vem convivendo com perigos intestinos. De maneira paradoxal, uma parte da magistratura do trabalho parece conspirar para o processo que pode levar a sua própria extinção. Nem se faz referência, aqui, embora pertinente, às inúmeras decisões declinando competência material de conflitos que resultam da relação de trabalho. Abdicar desta competência é abdicar de poder. Aliás, alinhadas com recentes julgados no Supremo Tribunal Federal que retiram da Justiça do Trabalho a capacidade de apreciar litígios decorrentes da relação de trabalho em clara contraposição ao estabelecido na Constituição Federal.

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De fato, refere-se às inúmeras decisões judiciais, nos mais diversos cantos do país, conferindo validade jurídica ao atentando contra o direito de acesso à justiça de trabalhadores/as, introduzido pela Reforma Trabalhista.

Os critérios legais, definidos na CLT reformada, para concessão de assistência judiciária gratuita e a regra de pagamento de honorários de sucumbência tornaram a Justiça do Trabalho, potencialmente, mais cara aos pobres do que qualquer outro ramo do Poder Judiciário. De modo corriqueiro, circulam, inclusive por veículos de comunicação da imprensa tradicional, decisões de primeira e segunda instâncias condenando a parte autora, na maior parte das vezes algum/a miserável ou recém promovido/a à pobreza, ao pagamento de dezenas de milhares de reais de honorários de sucumbência e de custas judiciais.

Essa parcela da magistratura mostra-se comprometida com os ideais dos reformadores da CLT que buscaram cercear o acesso da classe trabalhadora à Justiça do Trabalho. Também não surpreende tratar-se do mesmo segmento que vem interpretando as modificações legislativas em Direito Sindical de forma prejudicial aos sindicatos profissionais, o que contribui para a maior fragilização dessas entidades de defesa de trabalhadores/as.

Também se mostra preocupante o uso da magistratura do trabalho como mera homologadora de acordos extrajudiciais, mais uma das novidades trazidas pela Lei 13.467, de 2017. Sem sequer existir um litígio, sem a instauração da lide, empregador e ex-empregado/a podem celebrar um acordo extrajudicial e obter a chancela judicial a fim de conferir eficácia liberatória geral, isto é, o poder de quitar extinto contrato de trabalho, sem que a parte autora possa mais reclamar qualquer outro direito. É a transformação da Justiça do Trabalho em um cartório.

A seguir esse rumo, com um movimento sindical enfraquecido e sem conseguir apresentar-se como ameaça concreta ao capital, e com os/as trabalhadores sem acesso à Justiça do Trabalho, passará a fazer cada vez menos sentido preservar-se um ramo especializado do Poder Judiciário para dirimir os conflitos entre capital e trabalho.

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A representação política do grande capital e os ideólogos neoliberais não tardarão a defender a extinção da Justiça do Trabalho e a propor outras modalidades de solução de conflitos nas relações sociais de produção. Cartórios e instituições privadas de mediação e arbitragem estão à espreita da modificação legislativa que lhes franqueie o acesso a atuar nos conflitos individuais e coletivos de trabalho.

A Justiça do Trabalho, a senhora octogenária, encontra-se bem debilitada. Um capitalismo triunfante e hegemônico pretende imputar um ponto final a sua história. No entanto, mais ameaçador é o perigo interno, que vem de parte de seus próprios organismos. Uma importante fração da magistratura trabalhista, dotada de racionalidade neoliberal, conspira com suas decisões para a autodestruição.

Sem pretender ser exaustivo, os remédios, todavia, parecem amargos ou fora de alcance. Uma das possíveis alternativas, para se desviar a rota desse temível destino, seria a classe trabalhadora organizada, empobrecida e com o futuro comprometido pelas reformas neoliberais, retomar os movimentos do início do século passado que induziram o Estado a legislar em matéria de Direito do Trabalho. Tal perspectiva, atualmente, soa tão surreal, como se extraída de uma das obras de Garcia Márquez.

O outro caminho reside na disputa interna. A magistratura do trabalho não pode ser tomada como um bloco monolítico, constituída por pessoas que detenham uma forma homogênea de pensar ou de existir. Bem ao contrário disso. Sempre existiu e continuará a existir correlação de forças, gerando forte embate entre diferentes correntes entre magistrados/as.

A síntese resultante da relação dialética constituída a partir do confronto interno na magistratura do trabalho aponta, atualmente, para o predomínio de decisões que aplicam de modo acrítico (ou suicida) a reforma de cunho neoliberal.

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Deve-se observar que os/as elaboradores/as da antítese se veem ainda constrangidos nos seus atos decisórios pelos contemporâneos instrumentos legais que permitem aos tribunais superiores imporem às demais instâncias sua jurisprudência consolidada. Reclamações correicionais e constitucionais, mandados de segurança, entre outros, são adotados como forma de impedir a construção de jurisprudências minoritárias e de modo a garantir que as modificações jurisprudenciais sejam movimentos originados nas altas cortes, o que torna a resistência muito mais complexa e difícil. Sem contar a utilização de ações de controle concentrado de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal onde os direitos sociais vêm sendo flexibilizados negativamente, tão bem exemplificadas na ADPF 324, cujo julgamento escancarou as portas para a terceirização de mão de obra irrestrita, desconstruindo algumas décadas de jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho em sentido contrário.

Os conflitos entre capital e trabalho continuarão a existir e a suscitar, sob o modo de produção capitalista, uma solução institucional. Há mais de 80 anos, a Justiça do Trabalho vem atuando para oferecer a resposta do Estado com a finalidade de promover o apaziguamento nas relações sociais de produção, equacionando o conflito ao lhe conferir uma decisão. Certa ou errada, restará a compreensão das partes de existência de uma válvula de escape para pôr fim ao conflito. Sem a Justiça do Trabalho o Estado haverá de construir alternativas para a substituí-la. A considerar o rumo dos acontecimentos, não parece leviano afirmar que, muito provavelmente, alternativas piores.

A defesa da Justiça do Trabalho compete, sim, à classe trabalhadora, à advocacia trabalhista, mas, principalmente, à magistratura do trabalho que precisa recuperar os fins para os quais ela foi criada, com a ideia de servir como anteparo institucional nas relações de trabalho ao aplicar o tutelar Direito do Trabalho. Quem sabe, assim, retomando as suas origens sociais se tornará possível, em um futuro não muito distante, promover-se alterações que venham a transformá-la em uma Justiça Social.

*Nasser Ahmad Allan, mestre e doutor em Direito pela UFPR, advogado trabalhista e sindical em Curitiba, sócio de Gonçalves, Auache, Salvador, Allan & Mendonça Advocacia, integrante da Rede Lado.

*Eduardo Surian Matias, formado em Direito pela PUC Campinas (1986). Advogado trabalhista e sindical em Campinas, sócio de LBS Advogados, integrante da Rede Lado

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*Antonio Vicente Martins, formado em Direito pela URGS (1985). Advogado trabalhista e sindical em Porto Alegre, sócio de AVM advogados, integrante da Rede Lado

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